La Paz, Bolívia, 11/8/2011 – Povos aborígines das planícies orientais da Bolívia reeditarão, 21 anos depois, uma caminhada de 600 quilômetros em defesa das terras onde está prevista a construção de uma estrada de tráfego intenso e pesado, com apoio do governo brasileiro. A marcha contra a obra começará no dia 15, e unirá as cidades de Trinidad, capital do departamento de Beni (norte), com La Paz, onde fica a sede do governo nacional. A mobilização foi decidida após o fracasso do diálogo entre a Confederação Indígena do Oriente Boliviano e as autoridades encarregadas do projeto, que envolve uma vasta zona entre Beni e o central departamento de Cochabamba, rica em biodiversidade e que registra crescente expansão de cultivos de coca.
O protesto objetiva proteger 13 mil habitantes da área, membros dos grupos étnicos yuracarés, trinitários e chimanes, disse à IPS o dirigente Adolfo Moye, da subcentral do Território Indígena e Parque Nacional Isiboro Sécure (Tipnis), aberto opositor à estrada de 306 quilômetros que irá de Villa Tunari, em Cochabamba, a San Ignacio de Moxos, em Beni. Em setembro de 1990, uma marcha de indígenas das florestas e planícies bolivianas chegou a La Paz após um mês de caminhada, e conquistou o reconhecimento de quatro territórios ameaçados na época por empresas de exploração de madeira e outros recursos naturais.
A experiência se repetirá agora para exigir o respeito desse reconhecimento como território indígena, que foi confirmado com o decreto supremo 22610 de setembro de 1990, e amplamente apoiado na nova Constituição impulsionada pelo próprio Evo Morales, primeiro presidente de origem indígena da Bolívia. O texto constitucional proclama o respeito pela autonomia, cultura, terra e formas de governo tradicionais dos povos originários. O presidente Morales entregou, em 2009, um título considerando legal Tipnis, no qual concede direito proprietário sobre uma área de 1,09 milhão de hectares.
A Alta Comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Navi Pillay, por ocasião da celebração, no dia 9, do Dia Internacional dos Povos Indígenas do Mundo, denunciou que “quase 370 milhões de aborígines perderam ou estão sob iminente ameaça de perder suas terras ancestrais, territórios e recursos naturais devido à injusta exploração em nome do desenvolvimento”.
A Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) declarou, em agosto de 2009, Morales como “Herói Mundial da Mãe Terra”, por considerá-lo o máximo expoente e modelo na defesa do meio ambiente. Em abril de 2010, Morales organizou a Conferência Mundial dos Povos sobre a Mudança Climática e os direitos da Mãe Terra, que reuniu cerca de 30 mil participantes na cidade de Tiquipaya, em Cochabamba. Ao fim do encontro foi divulgada uma declaração de “respeito aos Direitos da Mãe Terra e aos Direitos Humanos”.
No entanto, a coordenadora de Campanhas do Fórum Boliviano sobre Mudança Climática e Desenvolvimento (Fobomade), Patricia Molina, disse à IPS que houve um notável giro nas políticas do governo ultimamente, como resultado da “pressão de grupos de plantadores de coca para expandirem suas áreas de produção”. Estudos da ONU indicam que a Bolívia ocupa o terceiro lugar na produção de coca na América Latina, com 30,9 mil hectares, superada por Colômbia (68 mil) e Peru (59 mil). A região por onde passará a estrada na Bolívia levou o ex-candidato à Presidência do Brasil José Serra a afirmar que se tratava da “estrada da cocaína”.
Em 2009, o então presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva, comprometeu o apoio financeiro ao projeto, com crédito de US$ 332 milhões. Na semana passada, o embaixador brasileiro em La Paz, Marcel Fortuna Biato, condicionou o desembolso do empréstimo, por intermédio do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), a um acordo entre o governo de Morales e os povos indígenas. Três artigos da nova Constituição da República Plurinacional da Bolívia reconhecem a integralidade dos territórios indígenas, obrigam o Estado a consultá-los sobre o uso de seus recursos naturais de acordo com suas leis e procedimentos, e garante a conservação dos ecossistemas.
Entretanto, o ministro da Presidência, Carlos Romero, disse que o resultado da consulta não obriga o governo a modificar sua decisão de construir a estrada. Entre os parlamentares oficialistas, o deputado indígena Pedro Nuni se declarou defensor das demandas dos povos originários orientais e disse não ter medo de perder a tribuna na Assembleia Plurinacional à qual chegou pelo voto de seus irmãos, afirmou.
Molina observa outro ângulo da polêmica e questiona a presença do Brasil, que qualifica de “potência imperialista” por seu interesse em obter vantagens para explorar petróleo, impulsionar o cultivo de alimentos para transformá-los em biocombustível, exercer controle sobre a geração de energia e influir na economia boliviana. “O interesse geopolítico está claro e é que a Amazônia andina possui grandes riquezas que o Brasil não vai perder”, disse Molina.
Uma infeliz intervenção de Morales em um ato público na qual aconselhou os jovens a “namorarem as companheiras yuracarés trinitárias” e convencê-las a não se oporem à estrada originou uma exigência pública para que o presidente peça desculpas por parte da não governamental Coordenadora da Mulher. “Suas declarações, além de ofensivas, evidenciam uma preocupante visão machista que promove a conquista de nossas ideias e nossos corpos”, diz a carta dessa entidade divulgada esta semana. Envolverde/IPS