Porto de Galinhas, Brasil, 28/9/2011 – Pelo menos 200 milhões de pessoas estão em perigo de ficar sem água, pois seu fornecimento depende de geleiras que estão derretendo, e que, paradoxalmente, criam a ilusão de recursos hídricos abundantes. Enquanto a temperatura global aumentou 0,6 graus centígrados nos últimos cem anos, a das geleiras cresceu 1,5 grau em apenas duas décadas. As mais afetadas são as comunidades locais, principalmente as do Himalaia e da Cordilheira dos Andes.
Se a temperatura está abaixo de zero, “o gelo se mantém como gelo, mas se aumenta, ainda que pouquinho, é suficiente para convertê-lo em água”, disse à IPS o colombiano Marco Rondón, especialista em manejo de recursos naturais do Centro Internacional de Pesquisas para o Desenvolvimento, do governo do Canadá (IDRC). Quando se reduz a superfície de gelo, a quantidade de água que derrete a cada ano afeta a forma de vida das populações próximas às geleiras, afirmou Rondón durante o XIV Congresso Mundial da Água, que acontece em Porto de Galinhas, Pernambuco, entre 25 e 29 deste mês.
O acelerado derretimento das geleiras foi destacado em um dos painéis do Congresso, organizado pelo governo pernambucano e pela Associação Internacional de Recursos Hídricos (IWRA), uma rede internacional sem fins lucrativos que se dedica a promover o debate sobre a administração e o manejo da água. Na região andina, cerca de dez milhões de pessoas dependem diretamente da água procedente das geleiras, mas muitas cidades da região vivem dos alimentos produzidos em áreas regadas pelas geleiras, como Lima, capital do Peru, país que tem cerca de 500 dessas massas de gelo.
Segundo Rondón, cerca de 30% da área de gelos andinos pode derreter em algumas décadas. “Muda a disponibilidade de água. Há mais água por um período curto de tempo. na Bolívia, por exemplo, as comunidades não estão necessariamente descontentes com o aumento da temperatura porque agora podem cultivar mais e o clima está mais quente. Porém, isto não é sustentável”, explicou. Para este especialista, este “bem-estar” vivido por algumas comunidades não durará mais do que três décadas, e depois a provisão de água será escassa.
A pesquisadora da organização não governamental Água Sustentável, da Bolívia, Paula Pacheco, trabalha com populações rurais para garantir o acesso ao recurso e desenvolve projetos-piloto de adaptação a uma mudança que é iminente: o derretimento do Nevado de Illimani, a 66 quilômetros de La Paz. Com altitude de 6.350 metros e superfície de 50 quilômetros quadrados, em pouco mais de quatro décadas, uma das geleiras mais importantes da Bolívia perdeu 21,3% de sua área. “O Nevado de Illimani é como um símbolo da cosmovisão andina, um regulador de água para muitas comunidades próximas de La Paz. É preciso ter uma visão mais integral do que está afetando o derretimento da geleira”, disse Paula.
Em associação com a Universidade Mayor de San Andrés, a Água Sustentável ajuda a propor uma estratégia participativa com as comunidades em busca de soluções práticas a partir de estudos científicos. Por exemplo, “não estão usando a água de forma eficiente para a agricultura. Estamos aplicando tecnologias para a coleta de chuva que podem armazenar 20 mil litros de água”, destacou a especialista.
São necessárias ações integradas e estratégias para aumentar a produção agrícola com maior eficiência, ao mesmo tempo fortalecendo as organizações políticas locais e nacionais. Um fator preocupante é que estas famílias do Illimani se acostumaram a usar três vezes a quantidade de água que consumiam antes, disse Rondón. “As pessoas estão intensificando suas atividades e usando mais água. Está se criando um costume de usar mais água do que antes e, quando esta faltar, a diferença será muito grande”, afirmou.
Há 60 mil quilômetros quadrados de geleiras na região de Hindu Kush-Himalaias, que compreende dez grandes bacias hidrográficas da Ásia. Os rios desta região abastecem 1,3 bilhão de pessoas. Todos os cenários de mudança climática indicam modificações grandes na vegetação e nas áreas úmidas, bem com a extinção de algumas espécies. O processo de derretimento das geleiras é muito complexo e ainda há muitas lacunas quanto aos dados, disse à IPS o diretor-executivo do Instituto para a Transição Social e Ambiental, no Nepal, Ajaya Dixit. Só agora os cientistas estão começando a compreender a magnitude do problema.
“Os Himalaias não vão desaparecer em um futuro próximo, mas diminuirão e não sabemos quanto. Sabemos muito pouco, mas vai acontecer e mudará as dinâmicas. É muito difícil prever o que ocorrerá em dez anos”, alertou Dixit. Com população de 30 milhões de pessoas, o Nepal tem muitas geleiras em altitudes entre cinco mil e seis mil metros. Os rios do país alimentam-se da neve e dos gelos. Em uma estimativa muito preliminar, 35% da população nepalesa depende da neve. Os que vivem rio abaixo usam a neve para irrigação, eletricidade e consumo de água. Portanto, a população que vive nas montanhas e depende da neve é muito maior.
“Devemos nos preocupar porque, se considerarmos as possibilidades extremas, as coisas irão muito mal. O Nepal produz poucos gases-estufa. No entanto, os liberados pelos países desenvolvidos e em desenvolvimento causarão muitos impactos nas geleiras do Himalaia”, explicou Dixit. Para ele, o enfoque deverá estar na adaptação com uma resposta planejada, pelas grandes incertezas sobre a conduta das mudanças climáticas regionais. Contudo, a adaptação deverá estar inserida no contexto da dinâmica socioeconômica das comunidades.
“Todos os países devem mitigar, fazer gestão de adaptação, e também aprender a conviver com o problema. No Nepal, a mitigação é muito pequena porque produzimos poucas emissões e dependemos das ações de outros países”, afirmou Dixit, lembrando que o desafio para o Nepal será a adaptação e a construção de capacidade de resiliência, “mas não temos recursos suficientes”.
Para Rondón, deve-se atacar a raiz do problema: “Estamos consumindo mais energia no mundo e usando energia que tem como subproduto a emissão de gases-estufa, que provocam a elevação da temperatura”. A menos que se faça algo para abordar esse problema, “será impossível deter o comportamento das geleiras”, acrescentou.
“A sociedade e os governos não têm muitas alternativas, a não ser aceitar que estes impactos serão cada vez mais fortes, e procurar dar respostas, preparar-se para isso. Se não podemos evitá-lo, então nos preparemos para que o impacto seja o menor possível”, disse Rondón. Envolverde/IPS