Opinião

O inexorável caminhar do tempo

por Amelia Gonzalez – 

Ando brincando com o tempo.

Ou será que deixo que ele brinque comigo?

As ruas vazias, os compromissos adiados, as notícias monotemáticas. E o tempo parou.

Às vezes me acordo e tento imaginar, ainda sem sair da cama, se será sábado, segunda, quarta… Nem importa tanto.

Por isto ando brincando de encurtar a distância do tempo, puxando da memória só lembranças boas. As amargas, deixo de lado. Eis uma boa função da memória, livrar-nos do mal. Axé!

Foi assim que me desloquei até finzinho do século passado, quando ganhei meu primeiro smartphone.

Eu era editora do Globo, e todos os editores tiveram direito ao dispositivo. Começava a se tornar realidade o deslocamento das notícias, a pulverização dos meios. E nós precisávamos estar atentos ao movimento.

Logo vieram as redes. O Orkut tornou-se febre, lembro das broncas nos repórteres que não despregavam os olhos daquele troço e atrasavam o fechamento do jornal.

Logo veio o Face, e o Orkut ficou para trás. Tornou-se comum a pergunta: “Você está no face?”. Criei meu perfil meio atrasada, confesso.

E tempos depois um amigo me perguntou: “Qual seu zap?” Eu não tinha, corri a criar.

A memória pula de galho em galho feito macaco. E já estou aqui, nos dias atuais, neste sábado que passou.

Era um dia modorrento como têm sido todos. Alguém me lembrou que ia acontecer um show mundial, capitaneado pela OMS, para homenagear os profissionais de saúde do mundo todo e repisar que é preciso ficar em casa. Artistas de renome, convidados por Lady Gaga, montaram traquitanas no ambiente doméstico e sua voz, sua arte, chegou para todo o mundo. Adorei ver os Rolling Stones, perceber detalhes da decoração deles…

Senti falta de Gil, Caetano, Chico e Milton. Percebi que o Brasil esteve fora das homenagens, e acho que faz sentido. Afinal, o chefe do executivo considera a pandemia uma gripezinha. E, mesmo no dia seguinte ao show, se arvorou feito dom Quixote em frente aos seus súditos, conclamando todos a acabarem com o isolamento.

Vida que segue, não vou ficar repisando a ceninha. Prefiro ampliar pensamento.

Como caminhamos rápido quando se trata de tecnologia que vai render lucros, não? De duas décadas para cá, já estamos neste ponto, de assistir um show mundial feito em casa. Eu fico impressionada.

E estarrecida.

Porque somos velozes com máquinas, com fios, chips, microchips, nanochips. Já com a saúde de toda gente, vejam como patinamos.

Um século depois da Gripe Espanhola, que infectou cerca de 500 milhões de pessoas, estamos aqui ainda precisando lembrar às pessoas que elas precisam lavar as mãos para não pegar o vírus. O ator Miguel Falabella encontrou um panfleto da época e reproduz, graciosamente, em vídeo que anda correndo pela rede. A recomendação era a mesma de agora, em panfletos distribuídos nas ruas.

(A foto é do livro de Josué de Castro, “Geografia da fome” e retrata pessoas, na época chamadas de retirantes, descendo o Rio São Francisco)

Sim, corremos pela rede. Não é preciso mais cortar árvores e produzir papéis para fazer chegar as mensagens à maioria. Já temos, para isto, a tecnologia a nosso favor.

E sabem o que também continua sendo do mesmo jeitinho? A pobreza, a fome, a desigualdade.

Aqui no Brasil, Josué de Castro, um pensador e ativista que nasceu no ano da Gripe Espanhola focou o trabalho de toda a vida para provar que a fome não é resultado de excesso de pessoas, mas de má distribuição de renda.

Quem tem dinheiro, come. Quem não tem dinheiro, não come.

Ele escreveu “Geografia da fome” em 1946. E é um livro tão atual.

De lá para cá, agregamos à miséria pela fome, a miséria causada pelas mudanças climáticas. Portanto, conseguimos piorar bastante a vida dos vulneráveis, dos que correm risco de vida desde que nascem. Na linguagem do atual governo, chamam-nos “desassistidos”.

Impossível não perceber o descalabro que é deixar tantos à margem de forma tão cruel. A nação mais rica também expõe esta vergonha, que vem à tona em tempos de crise, como foi quando o furacão Katrina assolou seu território.

Que o tempo não pare à toa.

Que a gente não jogue fora pensamentos, porque eles serão preciosos.

Mas, sobretudo, que a gente não se esqueça do que já viveu, das falsas promessas que já ouvimos, dos falsos resultados aos quais, no fim, não chegamos. Vamos ficar alertas.

 

A jornalista Amelia Gonzalez  criou e editou o caderno Razão Social, sobre sustentabilidade, no jornal O Globo e nos últimos sete anos foi colunista do site G1, sempre com foco neste tema