Opinião

Para onde vai o dinheiro do Pagamento por Serviços Socioambientais?

por Nurit Bensusan, especialista em biodiversidade do ISA e Mauricio Guetta, consultor jurídico do ISA

Se é verdade que os últimos anos têm sido marcados por intensos ataques à legislação ambiental, chamou a atenção da sociedade a aprovação, pelo Congresso, de uma norma de caráter positivo para o meio ambiente: a Lei nº 14.119, em 13 de janeiro 2021, que institui a Política Nacional de Pagamentos por Serviços Ambientais (PNPSA). O tema foi objeto de debates por anos no Legislativo e só pôde ser convertido em legislação devido ao esforço de diferentes e importantes setores da sociedade em busca de consensos – tanto que o projeto de lei contou com a aprovação unânime tanto na Câmara como no Senado.

Rompendo esses consensos e mantendo sua sanha de radicalização, o presidente da República, em decisão unilateral, resolveu vetar 23 dispositivos da nova lei, excluindo temas centrais para o sucesso na nova PNPSA.

A lei aprovada cria, em tese, um arcabouço para que o poder público – e também as relações entre particulares – incentivem ações positivas de proteção ao meio ambiente, por meio do pagamento pelos chamados serviços ambientais, ou seja: pagar por atividades individuais ou coletivas que favorecem a manutenção, a recuperação ou a melhoria dos serviços ecossistêmicos, conforme a definição da própria lei.

Os serviços ecossistêmicos, isto é, os benefícios que a humanidade obtém da natureza derivados, direta ou indiretamente, do funcionamento dos ecossistemas são divididos em quatro modalidades, de acordo com a Plataforma Internacional de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (IBPES) e com a nova lei:

a) serviços de provisão: fornecem bens ou produtos ambientais utilizados pelo ser humano para consumo ou comercialização, tais como água, alimentos, madeira, fibras e extratos;

b) serviços de suporte: mantêm a perenidade da vida na Terra, tais como a ciclagem de nutrientes; a decomposição de resíduos; a produção, a manutenção ou a renovação da fertilidade do solo; a polinização; a dispersão de sementes; o controle de potenciais pragas e vetores de doenças humanas; a proteção contra a radiação solar ultravioleta; e a manutenção da biodiversidade e do patrimônio genético;

c) serviços de regulação: concorrem para a manutenção da estabilidade dos processos ecossistêmicos, tais como o sequestro de carbono, a purificação do ar, a moderação de eventos climáticos extremos, a manutenção do equilíbrio do ciclo hidrológico, a minimização de enchentes e secas e o controle dos processos críticos de erosão e de deslizamento de encostas;

d) serviços culturais: os que constituem benefícios não materiais providos pelos ecossistemas, por meio da recreação, do turismo, da identidade cultural, de experiências espirituais e estéticas e do desenvolvimento intelectual, entre outros.

Limitações à nova política

Se, por um lado, a nova lei estabelece definições e diretrizes gerais para a PNSA, conduzindo a um cenário de maior segurança jurídica para os programas de pagamento por serviços ambientais existentes e para os que vierem a ser desenhados, por outro, o conjunto de vetos do poder executivo, ainda não examinado pelo Congresso, limita bastante a implementação da nova política.

De uma forma geral, é possível dizer que a Lei, sem os vetos, estabelece as definições de serviços ecossistêmicos, serviços ambientais, pagador de serviços ambientais e provedor de serviços ambientais; os objetivos e as diretrizes da PNPSA; o desenho do Programa Federal de Pagamentos por Serviços Ambientais (PFPSA) e sua governança; o Cadastro Nacional de Pagamentos por Serviços Ambientais; e os incentivos para o pagamento por serviços ambientais.

Foram vetados pelo presidente todos os dispositivos que faziam menção ao conselho deliberativo do PFPSA, instância que seria responsável por propor prioridades e critérios para a alocação de recursos, monitorar a conformidade dos investimentos com a PNPSA e avaliar o programa periodicamente. Esse colegiado, além de conferir transparência ao PFPSA, teria composição paritária, incluindo representantes do poder público, do setor produtivo e da sociedade civil. Seria a ponte da nova política e do programa federal com a sociedade brasileira. Outro dispositivo vetado é o Cadastro Nacional de Pagamento por Serviços Ambientais, medida que também prejudica a transparência e o necessário controle por parte da sociedade brasileira sobre o PFPSA.

Sobre o financiamento da PNPSA, a lei diz que “poderão ser captados recursos de pessoas físicas e de pessoas jurídicas de direito privado e perante as agências multilaterais e bilaterais de cooperação internacional, preferencialmente sob a forma de doações ou sem ônus para o Tesouro Nacional, exceto nos casos de contrapartidas de interesse das partes.” Esse dispositivo também revela uma fragilidade, pois não ficam assegurados montantes que garantam a implementação da legislação e sua continuidade.

O problema é agravado com o veto dos dispositivos que versavam sobre os incentivos, que previam benefícios fiscais e estímulos tributários a quem quisesse investir em programas de PSA – como a dedução no Imposto de Renda, por exemplo –, além de abrirem a possibilidade para que o Executivo criasse novos incentivos.

Os vetos, portanto, prejudicam sobremaneira a implementação da lei.

Prioridades, Reserva Legal e APP

“O que nós queremos também é, em havendo recursos, remunerar a própria Reserva Legal e não apenas o excedente”, afirmou o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, em entrevista ao programa Brasil em Pauta, da TV Brasil, em janeiro. “Remunerar o proprietário que cuida do meio ambiente. Não se tratando só, portanto, de uma política de fiscalizar e punir quem faz coisa errada”, concluiu.

De fato, a nova legislação prevê a possibilidade de pagamento por serviços ambientais para a manutenção de Reserva Legal (RL) ou das Áreas de Preservação Permanente (APPs) das propriedades, mas não sem critérios e sem o respeito à ordem de prioridades prevista.

Em primeiro lugar, antes de qualquer pagamento para essas modalidades de áreas protegidas, deve ser observada a prioridade prevista no parágrafo 2º do artigo 6º, que diz: “a contratação do pagamento por serviços ambientais no âmbito do PFPSA, observada a importância ecológica da área, terá como prioridade os serviços providos por comunidades tradicionais, povos indígenas, agricultores familiares e empreendedores familiares rurais definidos nos termos da Lei nº 11.326, de 24 de julho de 2006.”

Assim, embora a norma permita o pagamento por serviços ambientais em áreas sobrepostas àquelas cujos proprietários já têm a obrigação de conservar segundo o Código Florestal, como a RL ou as APPs, isso só poderia se dar se esgotadas as possibilidades de pagamento pelos serviços providos por comunidades tradicionais, povos indígenas, agricultores familiares e empreendedores familiares rurais. Afinal, sem isso, o pagamento por serviços ambientais não traria qualquer adicionalidade à proteção ambiental e poderia se resumir a pagar para que particulares simplesmente cumpram suas obrigações legais.

O próprio dispositivo da nova lei que versa sobre o tema estabelece uma série de preferências dentro do contexto de pagamento por serviços ambientais para a conservação de RL ou APPs. É o que se extrai do teor do artigo 9º: “as Áreas de Preservação Permanente, Reserva Legal e outras sob limitação administrativa nos termos da legislação ambiental serão elegíveis para pagamento por serviços ambientais com uso de recursos públicos, conforme regulamento, com preferência para aquelas localizadas em bacias hidrográficas consideradas críticas para o abastecimento público de água, assim definidas pelo órgão competente, ou em áreas prioritárias para conservação da diversidade biológica em processo de desertificação ou avançada fragmentação.”

Por certo, a nova PNPSA tem muito a contribuir com a proteção ambiental no Brasil, mas a sociedade deve ficar atenta para cobrar do Congresso a derrubada dos vetos presidenciais, medida essencial para manter a coerência da deliberação unânime nas duas casas legislativas. Da mesma forma, deve exercer seu controle social para impedir que interesses escusos venham a desvirtuar a aplicação da nova legislação. (Instituto Socioambiental – ISA)

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