por Dal Marcondes, especial para a Envolverde –

As grandes organizações globais, que acumularam capitais, tecnologias e conhecimentos nos últimos 50 anos têm o dever de se lançar em um projeto de prosperidade planetária e por fim à desigualdade ainda neste século  

Pode-se dizer que o século 20 começou de fato após a 1ª Guerra mundial, que devastou a Europa de 1914 a 1918, e depois que o mundo se recuperou da pandemia da gripe espanhola, que durou de janeiro de 1918 a dezembro de 1920. Apenas depois desses dois eventos catastróficos os estados, empresas e pessoas puderam se dedicar a cuidar cada qual do seu quadrado. Ficaram tão entusiasmados com essa liberdade que apenas 9 anos depois, em 1929 o descontrole total sobre o que cada qual considerava “seu quadrado” jogou o planeta novamente em uma crise de proporções épicas, a maior recessão registrada até agora, em 2020, quando o planeta mergulha em uma depressão média de 10%, desemprego entre 15% a 20% nas maiores economias e poucas perspectivas de reconstruir a dinâmica econômica em menos de 5 a 10 anos.

Governos de todo o mundo batem cabeça para entender o que se está convencionando chamar de “novo normal”. No que as cidades se transformarão nos próximos 80 anos? Como a economia se reorganizará em seus processos produtivos e o que será produzido, como o dinheiro irá circular e com que garantias? E, talvez, o mais importante, como s pessoas irão se organizar, viver, morar, se divertir?

Perguntas e respostas sobre o novo futuro estão por toda parte. Isso porque o velho futuro não será. A sucessão de crises do século 20 culmina com a crise de 2020, que pode ser chamada de disruptiva. Não será a última, mas é a que deve encerrar o ciclo da economia acumuladora e vetor de desigualdade do século 20. A economia do século 21 tem um único desafio que, se enfrentado de maneira eficaz, será capaz de resolver grande parte dos problemas da humanidade: resolver a desigualdade.

Suprir todos com os direitos universais à vida, alimentação, habitação, educação, saúde, segurança, trabalho, meio ambiente saudável, e a lista segue. É longa. As oportunidades que surgem do enfrentamento à desigualdade são imensas e são o gatilho para uma nova economia, uma nova gestão pública e novos propósitos para empresas de todos os tipos e portes. Contudo, não é uma empreita que pode ser levada a cabo por apenas uma força, governos não podem empreender solitários essa luta, por melhor que sejam as intenções. É preciso uma articulação inclusiva, um pacto em direção a um novo processo civilizatório que se recuse à leniência com a miséria.

Muitas organizações sociais têm trabalhado por décadas no enfrentamento parcial ao desafio da desigualdade, procurando suprir pontualmente alguma das deficiências do Estado ou da economia. Não têm sozinhas a capacidade de solucionar de forma abrangente qualquer delas, no entanto ao longo dos anos desenvolveram tecnologias sociais para o enfrentamento de muitas delas e podem ajudar a construir as bases das transformações desejáveis para a sociedade de forma a dar escala e agilidade ao desmonte das estruturas políticas, sociais e econômicas que dão sustentação à manutenção secular das desigualdades entre pessoas e países.

Por fim vem o papel das empresas. Grande parte das empresas que hoje dominam o mercado global com suas vistosas marcas surgiram no pós 2ª Guerra Mundial. Algumas das mais importantes em nossa sociedade altamente tecnológica e conectada têm 50 anos ou menos. Essas empresas se aproveitaram do modelo vigente de crescimento exponencial, concentração de mercados e grande acumulação de capitais. Também agruparam em torno de si o melhor que a humanidade desenvolveu em termos de tecnologias e processos, além de cérebros privilegiados e bem formados nas melhores universidades. As grandes empresas e o sistema financeiro global viveram nos últimos 50 anos uma idade dourada de acumulação.

Alavanca para o futuro

Aos governos cabe estimular e não atrapalhar, às organizações sociais contribuir com seus saberes, às pessoas buscar suas utopias. Às empresas cabe o mais efetivo no curto prazo, trabalhar para superar o momento emergencial da retomada da economia, buscando moldes mais alinhados com valores como prosperidade e harmonia com os limites. Estudos desenvolvidos pelo Sebrae mostram que no Brasil 98,5% das empresas formais são microempresas (faturamento até R$ 360 mil/ano), empresas de pequeno porte (faturamento até R$ 4,8 milhões/ano) e microempreendedores individuais (faturamento até R$ 81 mil/ano). No total são cerca de 14 milhões de empresa com esse perfil responsáveis por quase 55% dos empregos, 45% da massa salarial e cerca de 30% do PIB do país. Portanto, esse é o setor da economia que precisa ser resgatado com maior urgência para garantir uma retomada rápida das atividades econômicas, do emprego e da renda das pessoas.

Apenas como exemplo, a Unilever, uma das maiores empresas do planeta faturou em 2017 cerca de 54 bilhões de Euros, o equivalente a perto de R$ 330 bilhões. Em 2019, enquanto o Brasil se arrastava para conseguir um crescimento de 1% no PIB, o Banco Itaú contabilizou o segundo maior lucro de sua história, R$ 26,6 bilhões. O primeiro lugar ficou com 2015, no auge da crise do impeachment da ex-presidente Dilma Roussef, com R$ 27,7 bilhões. Um recorde entre os bancos Brasileiros. Globalmente o Walmart opera com faturamento anual médio de US$ 500 bilhões e a Disney com receita anual de US$ 60 bilhões. Esses números são apenas para exemplificar como as grandes empresas globais aproveitaram o século 20 para aglutinar recursos e fortalecer seus caixas. Esse modelo de concentração de renda não conseguiu entregar a promessa de prosperidade para todos. Há quem argumente que essas empresas geram milhões de empregos e bilhões em impostos, o que é verdade. Mas o século 20 acabou e a pandemia de covid19 é seu gran finale. O que importa agora é como esses gigantes vão trabalhar para construir o futuro da humanidade e da civilização nos próximos 80 anos e entregar a humanidade em melhor situação no século 22.

O papel dos grandes

A principal alavanca para o desenvolvimento econômico e social efetivo e ágil está no estreitamento da parceria entre esses gigantes e pequenas empresas e com as organizações sociais. Um movimento já ensaiado, mas ainda sem escala. Transferência de tecnologias, de capacidade de gestão, de capitais para que as micro e pequenas empresas possam se alavancar de forma efetiva e sustentável para gerar mais empregos e renda. E isso dentro de padrões de sustentabilidade já pactuados pela humanidade, como os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU, assumidos por 193 países em 2015 e que formam o mais importante pacto firmado pela humanidade desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948. É um pacto de sobrevivência da Sociedade Humana e propõe o desenvolvimento econômico e social em harmonia com os ecossistemas da Terra.

Para atingir os ODS e suas 169 metas a ação apenas dos governos não basta. É preciso o compromisso de todas as organizações humanas e reforço, isso inclui principalmente as empresas. Como vimos, as limitações não são financeiras, uma vez que a acumulação de capitais nos últimos 50 anos tem sido um sucesso no andar de cima das empresas e instituições financeiras. Também não é uma questão de tecnologias, uma vez que nesses mesmos 50 anos a humanidade foi capaz de grandes feitos em todas as áreas do conhecimento. Os diagnósticos da desigualdade também são bastante acurados, com propostas interessantes para a superação. Então, o que falta? Eu diria que a compreensão de que uma humanidade menos desigual será a chave para a perenidade da espécie, dos ecossistemas e para uma convivência harmoniosa com a biodiversidade e os biomas da Terra.

Há inúmeros motivos pelos quais a humanidade deveria aproveitar os próximos 80 anos para resolver suas mazelas mais comezinhas. A maioria deles de caráter econômico, social, humanista, espiritual e ambiental. Há até aqueles que dizem ser importante o salto civilizatório e evolutivo para o futuro para que a humanidade possa ocupar seu lugar no concerto das civilizações interplanetárias, o que pessoalmente me agrada como visão.

Retomando, o papel das grandes empresas, detentoras do capital, do conhecimento, da tecnologia e, principalmente, dos mercados, é oferecer para as empresas do andar de baixo os instrumentos e apoio necessários para garantir a capilaridade do desenvolvimento. O modelo de centralização e incorporação das inovações não garante o desenvolvimento distribuído. O processo de saída da recessão de 2020 precisa de uma especial atenção dos grandes às suas cadeias de valor. Quanto mais pequenas empresas forem salvas e estimuladas a ampliar seus negócios mais fortemente estaremos no preparando para o futuro.

Outro fator importante é o desarquivamento de projetos de tecnologias sociais, com apoio a organizações que atuam na ponta da miséria e da desigualdade para criar múltiplas frentes de progresso social e econômico. Garantir alimentos, água, saneamento, educação, habitação e tudo o mais que nos traz dignidade e felicidade.

Dal Marcondes é jornalista especializado em Economia, em Meio Ambiente e Mestre em modelagem de negócios pela ESPM-SP. Diretor da Agência Envolverde e membro do Conselho de Especialistas do Centro SEBRAE de Sustentabilidade.