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A política anticapitalista em tempos de COVID-19

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Atualizado em 02/04/2020 às 18:04, por Dal Marcondes.

Artigo de David Harvey* –  UHU Adital – 

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“Se a China não puder repetir o papel que desempenhou em 2007-8, então o ônus de sair da atual  crise econômica  se deslocará para os Estados Unidos e aqui está a grande ironia: as únicas políticas que funcionarão, tanto econômica como politicamente, são muito mais socialistas do que qualquer coisa que possa propor  Bernie Sanders ”, escreve  David Harvey , geógrafo e teórico social britânico, em artigo publicado por  Observatorio   de   la   crisis , 22-03-2020. A tradução é do  Cepat .

Eis o artigo.

Quando busco interpretar, entender e analisar o  fluxo diário de notícias , tendo a localizar o que está acontecendo no contexto de duas maneiras um tanto diferentes (e cruzadas) que almejam explicar como o  capitalismo  funciona.

O primeiro nível é um mapeamento das contradições internas da circulação e  acumulação de capital  como fluxos de valor monetário em  busca de lucro  através dos diferentes “momentos” (como os chama  Marx ) de produção, realização (consumo),  distribuição e reinvestimento . Esse modelo da economia capitalista como uma espiral de expansão e crescimento sem fim se complica bastante na medida em que se elabora, através de, por exemplo, as lentes das rivalidades geopolíticas, desenvolvimentos geográficos desiguais, instituições financeiras, políticas estatais, reconfigurações tecnológicas e uma rede em constante mudança das divisões do trabalho e das  relações sociais .

No entanto, também acredito que esse modelo deve se inscrever em um contexto mais amplo de  reprodução social  (nos lares e comunidades), em uma relação metabólica permanente e em constante evolução com a natureza (incluindo a “segunda natureza” da  urbanização  e o ambiente construído) e todos os tipos de formações culturais, científicas (baseadas no conhecimento), religiosas e sociais contingentes que as populações humanas geralmente criam através do espaço e do tempo.

Esses últimos “momentos” incorporam a expressão ativa dos desejos, necessidades e anseios humanos, a ânsia de conhecimento e significado e a busca evolutiva da satisfação em um contexto de  mudanças nos arranjos institucionais , disputas políticas, confrontos ideológicos, perdas, derrotas, frustrações e alienações, tudo em um mundo de acentuada  diversidade geográfica , cultural, social e política.

Essa segunda maneira constitui, por assim dizer, minha compreensão prática do  capitalismo global  como uma formação social distinta, enquanto a primeira trata das contradições dentro do  motor econômico  que conduz essa formação social por certos caminhos de sua evolução histórica e geográfica.

Quando em 26 de janeiro de 2020 li pela primeira vez sobre um coronavírus – que estava ganhando terreno na China – pensei imediatamente nas repercussões para a dinâmica mundial da acumulação de capital – David Harvey

Em espiral

Quando em 26 de janeiro de 2020 li pela primeira vez sobre um  coronavírus  – que estava ganhando terreno na  China  -, pensei imediatamente nas repercussões para a dinâmica mundial da  acumulação de capital . Sabia por meus estudos do modelo econômico que os bloqueios (fechamentos) e interrupções na continuidade do fluxo de capital provocariam desvalorizações e que, se as desvalorizações fossem generalizadas e profundas, isso indicaria o início de uma  crise .

Também sabia muito bem que  a China é a segunda economia  maior do mundo e que foi a potência que resgatou o  capitalismo mundial , após o período 2007-2008. Portanto, qualquer golpe na economia chinesa estava destinado a ter graves consequências para uma  economia global  que, de qualquer forma, já estava em uma situação lamentável.

O modo existente de  acumulação de capital  está com muitos problemas. Estavam sendo produzidos movimentos de protesto em quase em todos os lugares (de  Santiago  a  Beirute ), muitos dos quais focados em um modelo econômico dominante que não funciona para a maioria da população.

Este modelo neoliberal se baseia cada vez mais em  capital fictício  e em uma grande expansão da oferta monetária e na  criação massiva de dívida . Esse modelo já estava enfrentando uma insuficiente “demanda efetiva” para “realizar” os valores que o capital é capaz de produzir.

Então, como poderia o sistema econômico dominante, com sua legitimidade decadente e sua delicada  saúde , absorver e sobreviver ao inevitável impacto de uma  pandemia  da magnitude que enfrentamos?

A resposta depende em grande parte do tempo que dura a perturbação, pois, como apontou  Marx , a desvalorização não se produz porque os produtos básicos não podem ser vendidos, mas porque não podem ser vendidos a tempo.

Durante muito tempo, havia rejeitado a ideia de que a “ natureza ” estava fora e separada da cultura, da  economia  e da vida cotidiana. Adotei um ponto de vista mais dialético da relação metabólica com a natureza. O capital modifica as condições ambientais de sua própria reprodução, mas o faz em um contexto de consequências não intencionais (como a mudança climática) e no contexto de forças evolutivas autônomas e independentes que estão reconfigurando constantemente as  condições ambientais .

Os vírus sofrem mutação o tempo todo para estar seguros. Mas as circunstâncias em que uma mutação se torna um ameaça para a vida dependem das ações humanas – David Harvey

Deste ponto de vista, não existe um verdadeiro desastre “natural”. Os vírus sofrem mutação o tempo todo  para estar seguros. Mas as circunstâncias em que uma mutação se torna um ameaça para a vida dependem das  ações humanas .

Existem dois aspectos relevantes nisso. Primeiro, as condições ambientais favoráveis aumentam a probabilidade de mutações poderosas. Por exemplo, é plausível esperar que o fornecimento de alimentos intensivos (e indiscriminados) nos subtópicos úmidos possa contribuir para isso. Tais sistemas existem em muitos lugares, incluindo a  China  ao sul do  Yangtzé  e todo o  Sudeste   Asiático .

Em segundo lugar, as condições que favorecem a rápida transmissão variam consideravelmente. As populações humanas de alta densidade parecem ser alvos fáceis para os hóspedes. É sabido que as  epidemias  de sarampo, por exemplo, só florescem em grandes centros populacionais urbanos, mas morrem rapidamente em regiões pouco populosas. A forma com que os seres humanos interagem entre si, se movem, se disciplinam ou esquecem de lavar as mãos afeta a maneira como são transmitidas as doenças.

Nos últimos anos, a  SARS , a gripe aviária e a gripe suína parecem ter saído do  Sudeste   Asiático . A  China  também sofreu muito com a peste suína no ano passado, forçando um massivo abate de porcos e um consequente aumento dos preços da carne suína. Não estou dizendo tudo isso para acusar a  China .

Existem muitos outros lugares onde os riscos ambientais de mutação e disseminação viral são altos. A  gripe espanhola  de 1918 pode ter saído do Kansas. O  HIV  pode ter eclodido na África, o ebola começou no Nilo Ocidental e a dengue parece ter florescido na  América Latina . Mas os i mpactos econômicos e demográficos da propagação de vírus  dependem das fendas e vulnerabilidades pré-existentes no sistema econômico hegemônico.

Não me surpreendeu muito que a  COVID-19  tenha sido encontrada inicialmente em  Wuhan  (embora ainda não se saiba se ela se originou lá). Claramente, os efeitos locais podem se tornar importantes. Mas como esse é um grande centro de produção, seu impacto pode ter  repercussões econômicas globais .

A grande questão é como ocorre o  contágio  e sua difusão, e quanto tempo durará (até que possa ser encontrada uma vacina). A experiência anterior demostrou que um dos inconvenientes da crescente globalização é a impossibilidade de impedir uma rápida difusão internacional de novas doenças. Vivemos em um mundo altamente conectado, onde quase todo mundo viaja. As redes humanas de difusão potencial são vastas e abertas. O perigo (econômico e demográfico) é que a interrupção dure um ano ou mais.

Embora tenha havido um declínio imediato nos mercados acionários mundiais quando foram divulgadas as notícias, foi surpreendentemente seguido pela alta dos mercados. As notícias pareciam indicar que os negócios eram normais em todos os lugares, exceto na  China .

A crença parecia ser que iríamos experimentar uma  repetição da SARS , que foi rapidamente contida e teve um baixo impacto global, apesar de sua alta taxa de mortalidade.

Depois descobrimos que a  SARS  criou um pânico desnecessário nos mercados financeiros. Então, quando apareceu a  COVID-19 , a reação foi apresentá-la como uma repetição da  SARS  e, portanto, agora a preocupação era injustificada.

O fato de a epidemia ter causado estragos na China com rapidez e crueldade moveu o resto do mundo a tratar erroneamente o problema como algo que ocorria “lá” e, portanto, fora da vista e da mente nossa, ocidentais – David Harvey

O fato de a epidemia ter causado estragos na China  com rapidez e crueldade moveu o resto do mundo a tratar erroneamente o problema como algo que ocorria “lá” e, portanto, fora da vista e da mente nossa, ocidentais (acompanhados de sinais de  xenofobia  contra os chineses).

O vírus que teoricamente teria interrompido o crescimento histórico da  China  foi recebido com alegria em certos círculos do governo  Trump .

No entanto, dentro de poucos dias, houve uma interrupção nas cadeias de suprimentos mundiais, muitas das quais passam por  Wuhan . Essas  notícias foram ignoradas  e tratadas como problemas para certas linhas de produtos e algumas empresas (como a  Apple ). As desvalorizações eram locais e particulares e não sistêmicas.

Também se minimizou a queda na demanda dos consumidores, embora algumas empresas, como  McDonald s  e  Starbucks , que tinham operações dentro do mercado interno chinês tiveram de fechar suas portas. A coincidência do  Ano Novo chinês  com o surto do vírus mascarou os impactos ao longo de todo o mês de janeiro. E a autocomplacência do ocidente se demonstrou escandalosamente fora de lugar.

As primeiras notícias da propagação internacional do  vírus  foram ocasionais e episódicas, com um grave surto na  Coréia do Sul  e em alguns outros pontos quentes como o Irã. Foi o surto italiano que provocou a primeira reação violenta. A queda do mercado de ações em meados de fevereiro oscilou um pouco, mas em meados de março havia levado a uma desvalorização líquida de quase 30% nos mercados de ações em todo o mundo.

A escalada exponencial das infecções provocou uma série de respostas muitas vezes inconsistentes e às vezes de pânico. O presidente  Trump  realizou uma imitação do  Rei   Canuto  diante de uma potencial maré de doenças e mortes.

Algumas das respostas foram estranhas. O fato de o ‘ Federal Reserve ’ ter baixado as taxas de juros diante de um  vírus  parecia insólito, mesmo quando se reconhecia que a medida tinha por objetivo aliviar o impacto nos mercados, em vez de retardar o progresso do vírus.

Quarenta anos de neoliberalismo em toda Américas do Norte e do Sul e na Europa deixaram a população totalmente exposta e mal preparada para enfrentar uma crise de saúde pública – David Harvey

As autoridades públicas e os sistemas de saúde foram surpreendidos em quase todos os lugares pela escassez de mão de obra. Quarenta anos de neoliberalismo em toda Américas do Norte e do Sul e na Europa  deixaram a população totalmente exposta e mal preparada para enfrentar uma crise de saúde pública, apesar das  epidemias  anteriores – causadas pela  SARS  e o ebola – terem proporcionado abundantes advertências e lições sobre o que deveríamos fazer.

Em muitas partes do mundo supostamente “civilizado”, os governos locais e as autoridades estaduais – que invariavelmente constituem a primeira linha de defesa nas  emergências de saúde pública  – se viram privados de recursos, graças a uma política de austeridade destinada a financiar cortes impostos e subsídios às empresas e aos ricos.

As grandes empresas farmacêuticas têm pouco ou nenhum interesse em pesquisas não remuneradas sobre  doenças infecciosas  (como o coronavírus, conhecidas desde os anos 1960). A “Grande Indústria Farmacêutica” raramente investe em prevenção. Tem pouco interesse em investir diante de uma  crise de saúde pública . Dedica-se apenas a projetar curas. Quanto mais doentes estamos, mais ganham. A prevenção não é uma fonte de renda para seus acionistas.

O modelo de negócios aplicado à saúde pública eliminou a capacidade necessária para enfrentar uma emergência. A prevenção não era sequer um campo de trabalho suficientemente atraente para justificar associações público-privadas.

O presidente  Trump  cortou o orçamento do  Centro de Controle de Doenças  e dissolveu o grupo de trabalho sobre  pandemia  do  Conselho   de Segurança   Nacional , no mesmo espírito em que cortou todo o financiamento para pesquisas, incluindo as relacionadas à mudança climática.

Se eu quisesse ser antropomórfico e metafórico, concluiria que a COVID-19 é a vingança da natureza por mais de quarenta anos de maus-tratos brutais e abusivos ao meio ambiente, pelas mãos de um extrativismo neoliberal violento – David Harvey

Se eu quisesse ser antropomórfico e metafórico, concluiria que a COVID-19  é a vingança da natureza por mais de quarenta anos de maus-tratos brutais e abusivos ao meio ambiente, pelas mãos de um extrativismo neoliberal violento e não regulamentado.

Talvez seja sintomático que os países menos neoliberais,  China  e  Coréia   do Sul Taiwan  e  Cingapura , até agora superaram a  pandemia  de melhor forma que a  Itália .

Há muitas provas de que a China administrou mal, inicialmente, a última epidemia da  SARS . Mas desta vez, com a  COVID-19,  o presidente Xi se apressou em ordenar total transparência, tanto na apresentação de relatórios, quanto nas provas.

Mesmo assim, a China perdeu um tempo valioso (foram apenas alguns dias, mas importantes). No entanto, o que tem sido notável é que a  China  conseguiu confinar a epidemia à província de  Hubei , com  Wuhan  no centro. A epidemia não se espalhou para Pequim, nem para o Oeste, nem mais ao Sul.

As medidas tomadas para confinar o vírus geograficamente foram draconianas. Seria difícil reproduzir em outros lugares por razões políticas, econômicas e culturais.  China  e  Cingapura  desdobraram seus poderes de  vigilância social . Ao que parece, foram extremamente eficazes, embora se essas  medidas tivessem sido implementadas  apenas alguns dias antes, muitas mortes poderiam ter sido evitadas.

Esta é uma informação importante: em qualquer processo de crescimento exponencial, há um ponto de inflexão além do qual a massa ascendente se descontrola totalmente (observe, aqui, a importância da massa em relação à taxa). O fato de  Trump  ter perdido tempo por tantas semanas pode resultar custoso em muitas  vidas humanas .

Os efeitos econômicos estão agora fora de controle, sobretudo fora da  China . As perturbações ocorridas nas cadeias de valor das empresas e em certos setores resultaram mais sistêmicas e substanciais do que se pensava originalmente.

O efeito a  longo prazo  pode ser encurtar e diversificar as cadeias de suprimentos e, ao mesmo tempo, avançar para formas de produção que exijam menos mão de obra (com grandes repercussões no emprego) e uma maior dependência dos sistemas de produção com  inteligência artificial .

A interrupção das cadeias produtivas leva à dispensa e demissão de muitos trabalhadores, o que diminuirá a demanda final, enquanto a demanda por matérias-primas está diminuindo o consumo produtivo. Esses impactos pelo lado da demanda produzirão por si mesmos uma  recessão .

Mas a maior  vulnerabilidade  do sistema está enraizada em outros lugares. Os modos de consumismo que explodiram após 2007-8 se romperam com consequências devastadoras. Esses modos se baseiam em  reduzir o tempo de rotação do consumo  o mais próximo de zero.

A avalanche de investimentos nessas formas de consumismo teve tudo a ver com a  máxima absorção dos volumes de capital , mediante o aumento exponencial das formas de consumismo, que têm, por sua vez, o menor tempo de rotatividade possível.

Nesse sentido, o turismo internacional é emblemático. As visitas internacionais aumentaram de 800 milhões para 1,4 bilhão, entre 2010 e 2018. Essa forma de  consumismo instantâneo  exigiu investimentos massivos em infraestrutura em aeroportos e companhias aéreas, hotéis e restaurantes, parques temáticos e eventos culturais, etc.

Esta praça de  acumulação de capital está agora morta . As companhias aéreas estão perto da falência, os hotéis estão vazios e o desemprego em massa nas indústrias de hospitalidade é iminente. Comer fora não é uma boa ideia. Os restaurantes e bares foram fechados em muitos lugares. Até comida para viagem parece arriscada.

O vasto exército de trabalhadores na economia do trabalho autônomo e do trabalho precário está sendo destruído sem nenhum meio visível de apoio governamental. Eventos como festivais culturais, torneios de futebol e basquete, concertos, convenções empresariais e profissionais e até reuniões políticas e eleições são canceladas. Essas formas de consumismo vivencial “baseadas em eventos” são praticamente suprimidas. As receitas dos governos locais foram reduzidas. As universidades e escolas estão fechando.

Grande parte do modelo de vanguarda do consumismo capitalista contemporâneo é inoperante nas condições atuais. O impulso para o que André Gorz descreve como “consumismo compensatório” foi esmagado – David Harvey

Grande parte do modelo de vanguarda do consumismo capitalista contemporâneo é inoperante nas condições atuais. O impulso para o que André Gorz  descreve como “consumismo compensatório” foi esmagado (um recurso que supunha que os trabalhadores alienados poderiam recuperar seu espírito por meio de um pacote de férias em uma praia tropical).

Mas as economias capitalistas contemporâneas estão impulsionadas em 70 ou até 80% pelo consumismo. Nos últimos quarenta anos, os sentidos básicos do consumidor se tornaram a chave para a mobilização da demanda efetiva e o capital se tornou cada vez mais dependente dessas demandas, artificiais em muitos casos.

Essa fonte de energia econômica não havia estado sujeita a flutuações repentinas, como a erupção vulcânica da Islândia que bloqueou voos transatlânticos durante algumas semanas. Mas a  COVID 19  não é uma flutuação repentina. É um choque verdadeiramente poderoso no coração do consumismo que domina nos países mais prósperos.

A forma em espiral de acumulação de capital sem fim está colapsando para dentro, de uma parte do mundo a outra. A única coisa que pode salvá-la é um consumismo massivo financiado pelo governo, evocado do nada – David Harvey

A forma em espiral de acumulação de capital sem fim está colapsando para dentro, de uma parte do mundo a outra. A única coisa que pode salvá-la é um consumismo massivo financiado pelo governo, evocado do nada. Isso exigirá socializar toda a economia dos Estados Unidos, por exemplo, sem chamá-la de socialismo, é claro.

As linhas de frente

Existe uma conveniente mitologia de que “as doenças infecciosas não reconhecem barreiras e fronteiras de classe”. Como muitos desses ditados, há uma certa verdade nisso. Nas epidemias de cólera do século XIX, a horizontalidade da doença entre as classes sociais foi dramática o suficiente para dar lugar ao nascimento de um movimento pela saúde pública (que mais tarde se profissionalizou) e que persiste até hoje.

Não está claro se esse movimento pretendia proteger a todos ou apenas as classes altas. Mas hoje as diferenças de classe e os efeitos sociais são uma história muito diferente.

Agora, o  impacto econômico e social  se insere através das discriminações “habituais” que está instalada em toda parte. Para começar, a força de trabalho que trata de um crescente número de doentes é tipicamente sexista e racializada na maior parte do mundo ocidental. Essas trabalhadoras e trabalhadores são facilmente apreciados, por exemplo, nos serviços mais desprezados, em aeroportos e outros setores logísticos.

Essa “nova classe trabalhadora” está na vanguarda e carrega o fardo de ser a força de trabalho que mais corre o risco de contrair o vírus devido à natureza de seus empregos. Se tiverem a sorte de não contrair a doença, provavelmente serão demitidos mais tarde devido à crise econômica que a pandemia trará.

Há também a questão de quem pode trabalhar em casa e quem não pode. Isso agudiza a divisão social. Nem todos podem se dar ao luxo de se isolar ou se colocar em quarentena (com ou sem remuneração) em caso de contato ou infecção.

Nos terremotos na Nicarágua (1973) e no México D.F. (1995), aprendi em campo que os terremotos foram, na realidade, “um terremoto para os trabalhadores e os pobres”.

A pandemia da COVID-19 exibe todas as características de uma pandemia de classe, gênero e raça – David Harvey

Portanto, a pandemia da COVID 19  exibe todas as características de uma  pandemia de classe , gênero e raça. Embora os esforços de mitigação estejam convenientemente ocultos na retórica de que “todos estamos juntos nesta guerra”, as práticas, em particular por parte dos governos nacionais, sugerem motivações mais sombrias.

A classe trabalhadora contemporânea dos Estados Unidos (composta predominantemente por afro-americanos, latinos e mulheres assalariadas) enfrenta uma escolha horrível: a contaminação por cuidar dos doentes e manter meios de subsistência (entregadores de supermercado, por exemplo) ou o desemprego sem benefícios e assistência médica adequada.

Os funcionários assalariados (como eu) trabalham em casa e recebem seus salários como antes, enquanto os diretores gerais se movimentam em jatos particulares e helicópteros.

As forças de trabalho na maior parte do mundo têm sido socializadas durante muito tempo para se comportarem como bons sujeitos  neoliberais  (ou seja, culpar a si mesmas ou a Deus se algo der errado, mas nunca ousar sugerir que o  capitalismo  pode ser o problema).

Contudo, mesmo bons sujeitos neoliberais podem ver hoje que há algo muito errado na forma como a pandemia está sendo respondida.

A grande questão é: quanto tempo isso vai durar? Pode levar mais de um ano, e quanto mais o tempo passa, mais  desvalorização  haverá, mesmo para a  força de trabalho . É quase certo que os níveis de desemprego subirão para níveis comparáveis aos dos anos 1930, na ausência de intervenções estatais massivas que teriam que ir contra a  lógica neoliberal .

O consumismo contemporâneo é indubitavelmente excessivo, Marx o descreveu como “consumo excessivo e insano, monstruoso e bizarro” – David Harvey

As ramificações imediatas para a economia, assim como para a vida social diária, são múltiplas e complexas. Mas nem todas são ruins. O consumismo contemporâneo é indubitavelmente excessivo, Marx  o descreveu como “consumo excessivo e insano, monstruoso e bizarro”.

imprudência  do consumo excessivo desempenhou um papel importante na degradação do meio ambiente. O cancelamento de voos de companhias aéreas e a redução radical de transporte – e de movimento – tiveram consequências positivas em relação às emissões de gases do efeito estufa.

A qualidade do ar em  Wuhan  melhorou muito, como em muitas cidades dos  Estados   Unidos . Os locais de turismo ecológico terão um tempo para se recuperar do pisoteio dos viajantes. Os cisnes retornaram aos canais de Veneza. À medida que diminui o gosto pelo excesso de consumo imprudente e sem sentido, poderá haver alguns benefícios a longo prazo. (Menos mortes no  Monte   Everest  pode ser algo bom).

E embora ninguém diga isso em voz alta, o viés demográfico do vírus poderá acabar afetando as  pirâmides etárias,  com efeitos a longo prazo na  Seguridade Social  e no futuro da “indústria do cuidado”.

A vida cotidiana vai desacelerar e para algumas pessoas isso será uma bênção. As regras sugeridas de  distanciamento social  poderão, se a emergência for prolongada o suficiente, levar a mudanças culturais. A única forma de consumismo que quase certamente se beneficiará é a que chamo de economia “ Netflix ”, que atende os “consumidores compulsivos”.

No  plano econômico , as respostas foram condicionadas pela forma como foi produzida a saída da crise de 2007-8. Isso levou a uma política monetária ultraflexível, ao resgate de bancos e a um aumento dramático no consumo produtivo por meio de uma expansão massiva no investimento em infraestruturas (inclusive na  China ).

Isso não pode ser repetido na escala necessária. Os planos de resgate estabelecidos em 2008 focavam nos bancos, mas também envolviam a nacionalização de fato da  General   Motors . Talvez seja significativo que, frente ao descontentamento dos trabalhadores e o colapso da demanda, as três grandes montadoras automobilísticas de Detroit estejam fechando, pelo menos temporariamente.

Se a  China  não puder repetir o papel que desempenhou em 2007-8, então o ônus de sair da atual  crise econômica  se deslocará para os Estados Unidos e aqui está a grande ironia: as únicas políticas que funcionarão, tanto econômica como politicamente, são muito mais socialistas do que qualquer coisa que possa propor  Bernie Sanders . Os programas de resgate terão que começar sob a égide de  Donald Trump , presumivelmente sob a máscara de “ Making America Great Again ” (Tornando a América Grande Novamente).

Todos os republicanos que se opuseram visceralmente ao resgate de 2008 terão que comer o corvo ou desafiar  Donald Trump . Esse personagem poderia chegar a cancelar as eleições “pela  emergência ” e impor uma presidência autoritária do Império para salvar o capital e o mundo dos “distúrbios e da revolução”.

David Harvey ( Gillingham Kent 7 de dezembro  de  1935 ) é um teórico da Geografia britânico formado na  Universidade de Cambridge . É professor da  City University of New York  e trabalha com diversas questões ligadas à  geografia urbana . Em 2007 foi classificado como o décimo oitavo teórico vivo mais citado nas ciências humanas