Dal Marcondes, da Envolverde –
E quase sempre, são as casas do povo pobre que escorregam pelas encostas e surfam pelas enchentes.
O Brasil é tão diverso que o próprio nome deveria ser no plural, Brasis. É praticamente impossível enumerar as diversidades e as complexidades para estabelecer uma compreensão geral sobre elas. Por meu trabalho como repórter tive a oportunidade de percorrer uma parte do imenso território. Dos 27 estados creio que nunca estive em três deles. Dos seis biomas principais, já estive em todos. Já visitei territórios indígenas, quilombolas, comunidades e escritórios acarpetados. Em todos se aprende alguma coisa, se conhece pessoas e se capta alguma compreensão sobre a diversidade.
No entanto, em nenhum lugar pude ter uma percepção tão ampla, abrangente e complexa do que é ser gente quanto em todas as vezes em que entive em Porto Alegre, imerso em cobertura das edições anuais do Fórum Social Mundial. Impressionante o generoso abraço de uma cidade aos povos dos muitos Brasis e de grande parte do mundo. Como toda capital de estado, Porto Alegre incorpora uma personalidade coletiva de seu estado. Ser de fora dá uma perspectiva diferente da que imagino os gaúchos tenham sobre si mesmos.
Em outros tempos também perambulei pelo interior gaúcho, suas cidades e colônias. Conheci a gente simples de estâncias e de algumas pequenas cidades. Sempre me delicio com os com os sotaques regionais. Mais nos recantos do que nas metrópoles.
Já faz algum tempo que não me embrenho no campo para reportar. Sinto saudades, mas entendo minhas escolhas e, também, algumas limitações. Nos últimos dias as imagens vindas do Sul dão um aperto no coração. Os depoimentos de quem perdeu tudo no maior desastre climático que já atingiu o Rio Grande do Sul provocam lágrimas distantes. Mulheres que abraçam seus filhos, encolhidas em abrigos, com olhar de súplica e a força da fêmea acuada impressionam.
De longe se assiste como a um reality. É a realidade que exerce sua vontade tenta arrancar as pessoas da letargia e da impotência. Sempre parece que tudo é tão grande, tão distante, tão poderoso que nada há que se fazer. Esse é o dilema do nosso tempo. A TV nos traz todo o tempo as tragédias humanas, da natureza, do clima e do crime. Nos joga em um vazio existencial.
Se a mim, que estou a milhares de quilômetros assistindo a tragédia, atinge o impacto, imagino como se sentem meus amigos gaúchos. Não há palavras que tenham o poder de aplacar a magnitude dessa dor.
Para os que, como eu, têm alguma compreensão do que é a “Emergência Climática”, além da consternação humana, vem a indignação com o despreparo para uma catástrofe muitas vezes anunciada.
Virão os apoios tradicionais, que vão apontar a força e a determinação do povo gaúcho, que se solidarizarão com as perdas humanas e oferecerão recursos insuficientes para as perdas de patrimônio. Gestores que não aproveitarão a oportunidade para ampliar a resiliência de suas cidades e os muito aproveitadores de sempre.
A tragédia, no entanto, vai permanecer à espreita. Não é privilégio do povo gaúcho, visita com regularidade cada canto dos Brasis. Brumadinho, São Sebastião, em São Paulo, incêndios no Pantanal e no Museu Nacional, tempestades no litoral nordestino e secas na caatinga interior. E, no Sul, o vaticínio dos meteorologistas, a chuva será inclemente.
E quase sempre, são as casas do povo pobre que escorregam pelas encostas e surfam pelas enchentes.
O que nos resta fazer? Limpar a lama e seguir em frente?
(Envolverde)