Opinião

Carta a uma jovem do século XXI

Minha amiga Martha alegrou minha tarde de ontem, com a mensagem que dizia: “Laura está muito interessada em se informar sobre questões climáticas. Pedi a ela que seguisse você no seu blog e conversasse com você”. Para contextualizar: Martha foi da equipe do caderno “Razão Social”, que editei durante nove anos no jornal “O Globo”, atualizando os temas ligados ao ecodesenvolvimento.

Laura tem 19 anos, portanto é uma jovem nascida e criada no século XXI. Cerca de três décadas antes de seu nascimento, o mundo já tinha se dado conta de que levar a vida como extrativista e consumista não daria em boa coisa. Uma trágica descoberta, feita em laboratórios científicos, vinha reafirmando o que os povos da floresta percebiam em seu dia a dia: os bens naturais são finitos.

E é assim que começa a história que quero contar para Laura nesta missiva virtual.

Querida Laura

Primeiro, é importante singularizar este depoimento. Aqui vai o relato de alguém que era uma jovem adulta no ano de 1992, quando o Rio de Janeiro sediou a Rio-92, segunda Conferência Mundial sobre o Meio Ambiente. A primeira, em 1972, acontecera na fria Estocolmo, capital da Suécia, numa época em que nem fax funcionava bem, portanto no Brasil soubemos pouco, quase nada, do que fora decidido lá, sob a batuta do então presidente da ONU Maurice Strong.

Mas a Rio-92, não! Foi aqui, em nossa casa. O Aterro do Flamengo foi tomado por ONGs ambientalistas, indígenas, quilombolas, população ribeirinha, todo mundo advertindo para o que estava acontecendo no Brasil profundo. Não funcionei como repórter, mas editava as matérias escritas pelos colegas que cobriram in loco a Conferência. Na época eu era subeditora do jornal O Globo, na Editoria Rio.

Escolhia as fotos, ouvia os relatos, consertava alguns erros nos textos e tentava fazer bons títulos para chamar a atenção dos leitores. Ficava impactada com as notícias, sim.  Mas… saía da redação, depois de um dia intenso de trabalho, e ia viver minha vida, conversar com amigos, sem fazer muita conexão com tudo aquilo que eu lera e ouvira.

Na época, vivíamos o desterro político de um presidente que sofreu o impeachment. E fizemos aquilo que ainda hoje fazemos: priorizamos os desmandos palacianos, como se tudo aquilo que ouvíamos na Rio-92 não fosse mais importante.

Penso que, como eu, a sociedade em geral, no dia a dia, não se rendeu aos fatos mostrados na Rio-92. Ainda era difícil fazer a ligação entre consumo e meio ambiente.

 Aqui no Brasil, o então presidente Collor de Melo, antes de ser afastado, abriu as portas para a entrada de produtos estrangeiros. Laura, eu preciso lhe dizer que, apesar de todos os pesares, aquele foi um momento especial. No sentido macro, começaram a entrar produtos e máquinas que tornavam nossa vida melhor. De computadores a equipamentos médicos (cateteres, por exemplo), que podiam salvar vidas.

Mas, junto com isso, chegavam também quinquilharias e outros produtos que nos deixavam feito crianças em frente a vitrine de brinquedos. Lembro bem que eu gostava de usar uma henna francesa que antes só era vendida numa lojinha escondida no Leblon. Custava caro, mas valia o investimento que eu fazia de vez em quando. De repente, a mesma henna estava ali, ao alcance das mãos, nas farmácias do bairro. Pode jogar pedras, porque vou confessar: não pensava em quem plantava a henna, em quem extraía o corante, não tinha ideia, nem procurava saber sobre as condições do plantio, tampouco no salário das pessoas que empacotavam o produto ou nas emissões de carbono intensa do transporte que a fazia chegar até mim.  Percebeu o tamanho da encrenca? Agora multiplique isso pelas mil quinquilharias que começaram a vir dos países asiáticos e que nos enchiam os olhos. De novo: estou relatando sob o ponto de vista de uma pessoa urbana, classe média, que morava numa grande cidade.

A febre de consumo chegou às roupas. Você já ouviu falar em calça Lee? Pois é o seu jeans de hoje, e na época eu cruzava a cidade para comprar, numa loja em Copacabana. Ou esperava uma muambeira, que vendia escondida no banheiro do jornal. Até que, com a “abertura dos portos”, a calça Lee virou jeans , barateou e foi parar na vitrine dos shoppings… como resistir?

Não estou justificando nosso comportamento, apenas relatando os fatos. Ontem mesmo, quando li a reportagem mostrando que no deserto de Atacama existe uma montanha de roupas jogadas fora, pensei na minha primeira calça Lee. Como durou!

Mas, chega de falar do passado, senão esta carta vai ser ressentida, e isto não se casa com meu estilo. Se você me perguntar se hoje eu percebo tudo isso, a resposta é sim. Mas não patrulho ninguém para mudar. Não é meu estilo.

 É importante você saber que, à exceção dos ambientalistas, que na década de 90 começaram a emergir, pouco demos ouvidos às questões que já se anunciavam. Na época, quem alertava recebia logo o apelido desagradável de ecochato, seguido da frase: “Vai ficar aí salvando a vida do mico leão dourado e as baleias?”. Pois é. Hoje sabemos o que é bulliyng, na época a gente ria amarelo e se escondia.

Como você me pediu dicas de leitura, sugiro dois livros que podem dar essa visão histórica. O primeiro, acabo de ler: é da Samyra Crespo, ambientalista que esteve no segundo escalão do governo Lula. Tem muita coisa para contar e o faz de um jeito gostoso, leve. O livro se chama “Conta que viveu, escreve quem se atreve”, editado pelo Instituto Envolverde. O outro livro é do economista Ignacy Sachs, e se chama “A terceira margem” (Ed. Companhia das Letras).

 Assim como Samyra, Sachs mistura a vida pessoal no seu relato sobre a luta como ambientalista. Se eles usam essa maneira de contar é porque, sim, é tudo misturado. Não se pode falar e escrever sobre meio ambiente sem misturar com o dia a dia.

Ano que vem vai ser um ano cheio de comemorações porque terão se passado quatro décadas da Conferência de Estocolmo, três décadas da Rio-92, uma década da Rio + 20… adoramos efemérides.

Eu, como repórter, na cobertura da Rio + 20, no Riocentro

Talvez as comemorações fiquem mesmo centradas em Estocolmo no ano que vem, já que o Brasil não está, atualmente, sendo visto como um parceiro nas questões climáticas. Não é para menos. Leu a frase do atual ministro do meio ambiente na COP 26? Ele disse: “Onde existe muita floresta, existe muita pobreza”.

É uma frase que soa mal aos ouvidos de quem se preocupa, de quem gosta dos bens naturais, não é? Mas soa muito bem aos ouvidos de quem chama BENS NATURAIS de RECURSOS NATURAIS.  Já vou explicar meu ponto.

Sempre fiquei muito incomodada com discursos vazios. Naomi Klein, a jornalista canadense, militante da causa ambiental –  outra dica boa de leitura para você (“This changes everything”, sem tradução para o português, é o melhor dela, mas tem outros bons) , diz que as COPs estão cheias de “retórica inútil”. Concordo com ela, por exemplo, quando leio num mesmo jornal a opinião de um especialista que ressalta a necessidade de se elevar o PIB e outro artigo, geralmente nas páginas de amenidades ou em encartes especiais, alertando para a necessidade de se preservar o meio ambiente e baixar as emissões.

Atenção, jovem Laura: uma coisa tem a ver com a outra, sim!

E aqui vai outra indicação de leitura: “Laudato Si”, a encíclica papal de 2015. O papa Francisco, já engajado no tema desde o início de seu papado, diz com todas as letras: é preciso baixar produção E o consumo, se quisermos realmente salvar a humanidade dos eventos extremos causados pelas mudanças climáticas. Porque, no fim das contas, é do que se trata: furacões, tempestades violentas, alagamentos, secas, muito calor e muito frio acabam com plantações, matam mendigos nas ruas (de calor ou frio) e, de quebra, causam transtorno também nas grandes cidades.

 Mas, adivinhe quem será, sempre, o mais prejudicado? O pobre, claro. Os indígenas, os ribeirinhos, os quilombolas, exatamente aqueles que não têm assento nas COPs, não têm como dizer sim ou não a este ou aquele acordo global. Não que sejam acordos totalmente inúteis, é preciso salientar. Ao menos fazem acordar uma parte da sociedade ainda adormecida.

E por que a questão do PIB me incomoda? Porque só se eleva PIB de um país quando se eleva a produção. Percebeu o paradoxo? E não é de hoje que já tem muitos especialistas pensando a esse respeito, tentando uma forma de modificar a medição de riqueza atual.

O ex-presidente da França Nicolas Sarkozy (que administrou o país de 2007 a 2012) chegou a encomendar um estudo para rever o PIB. Três renomados economistas: Joseph Stiglitz, Amartya Sen, Jean-Paul Fitoussi se debruçaram sobre pesquisas e formularam uma nova possibilidade de medição de riqueza, publicada em 2009 mas que foi devidamente engavetada mesmo antes de Sarkozy deixar o governo.

Já me alonguei demais, é este meu problema. O assunto me apaixona tanto, e é tão rico, que acabo perdendo leitores no meio do caminho. Leitores que, como agora, estão acostumados a ler tudo de forma abreviada, rápida.

Não será seu caso, querida Laura, eu tenho certeza. Guarde esta longa missiva e vá lendo devagarinho, degustando E, por favor, aceite meu pedido de desculpas. É sincero. Deixamos um mundo bem mais complexo para a geração de vocês. Mas a riqueza que vocês terão será a de perceber que é melhor SER do que TER.

 Enquanto eu estiver por aqui, estarei disponível para ajudar com o conhecimento que continuo adquirindo em pesquisas incansáveis. É no que eu acredito.

A jornalista Amelia Gonzalez  criou e editou o caderno Razão Social, sobre sustentabilidade, no jornal O Globo e nos últimos sete anos foi colunista do site G1, sempre com foco neste tema. Atualmente publica em seu próprio Blog, o Ser Sustentável.

(Ser Sustentável/#Envolverde)