Nurit Besusan, coordenadora adjunta de Política e Direito do ISANo primeiro artigo de uma série, Nurit Bensusan volta a analisar o novo marco legal de acesso ao patrimônio genético e ao conhecimento tradicional, mostrando mais brechas que permitem que os resultados do uso de nossa Biodiversidade não sejam compartilhados com comunidades indígenas e tradicionais.
Nurit Besusan, do ISA –
Para começar, um teste. Responda às três perguntas abaixo:
1. Se você fica sabendo que os índios usam uma planta para passar no cabelo e que o resultado é sensacional, melhor do que qualquer escova progressiva, e você resolve fazer um xampu com essa planta, você estará usando conhecimento tradicional?
2. Se a mesma planta, usada para passar no cabelo, quando pesquisada, com a finalidade original de fazer um xampu, revela-se muito útil para combater infecções renais e acaba resultando em um remédio para os rins, você usou conhecimento tradicional?
3. Se você descobrir que o amido da mandioca, cultivada, manejada e domesticada pelos índios da Amazônia é um componente excelente para a criação de novos cremes faciais e você decide investir nisso, você estará usando conhecimento tradicional?
Se você respondeu afirmativamente a essas três perguntas, não resta dúvida que você entende a natureza do conhecimento tradicional e sabe que uma das características desse conhecimento, talvez a mais significativa delas, é sua íntima relação com a natureza, com o local onde é gerado e desenvolvido. Não há apenas conhecimento tradicional associado à biodiversidade, mas também, e principalmente, biodiversidade – espécies e paisagens – que guarda dentro de si conhecimento tradicional. Ou seja, um conhecimento tradicional intrínseco ao patrimônio genético.
Se você respondeu afirmativamente apenas às questões 1 e 2, convido você a pensar no seguinte: muitas vezes, a motivação do acesso ao patrimônio genético é o conhecimento tradicional, como, por exemplo, no caso do acesso a uma planta que é usada tradicionalmente para passar no cabelo. Se tal planta é utilizada para o desenvolvimento de um produto com a mesma finalidade, não resta nenhuma dúvida de que houve acesso ao conhecimento tradicional e que todos os dispositivos legais relacionados ao uso desse conhecimento devem ser seguidos. Mas há inúmeros casos onde uma vez iniciadas as pesquisas para o desenvolvimento de um produto, outros usos são descobertos e, por fim, a finalidade do produto acaba sendo outra, diferente da original, como no exemplo acima, onde o resultado é um remédio para os rins. Nesse caso, há quem diga que não houve acesso ao conhecimento tradicional, mas houve, sim, pois as pesquisas com aquela planta começaram por causa do conhecimento que os índios tinham. Se não fosse isso, os desdobramentos não aconteceriam, ou seja, não haveria remédio desenvolvido para as infecções renais.
Se você respondeu afirmativamente apenas a primeira pergunta, você está bastante afinado com nosso novo marco legal sobre o assunto (Lei 13.123/2015 e Decreto 8.772/2016). Na nova legislação, o acesso ao conhecimento tradicional só é reconhecido quando é transformado no principal elemento de agregação de valor do produto final a ser comercializado. Se o uso tradicional não é o mesmo que o plasmado no produto final, não fica caracterizado, segundo a Lei 13.123/2015, a presença do conhecimento tradicional. O resultado é que o patrimônio genético pode ser acessado sem consentimento prévio e informado dos detentores de conhecimento tradicional e sem que haja qualquer repartição dos benefícios derivados da exploração comercial do produto.
Assim, como na terceira questão do nosso teste, quando uma planta manejada, selecionada, domesticada por povos ou comunidades tradicionais para fins alimentares é usada para o desenvolvimento de um produto cosmético a ser comercializado por uma indústria, não há o reconhecimento do envolvimento do conhecimento tradicional no produto final. O resultado disso é que o acesso ao patrimônio genético, mesmo que nele haja, amalgamado, conhecimento tradicional, acontece sem seu reconhecimento e sem as garantias que o marco legal deveria dar aos detentores desse saber.
Não possível, assim, recusar o acesso ao patrimônio genético, nem receber qualquer benefício posterior pela exploração comercial do produto. Esse divórcio que o novo marco legal promoveu, dissociando o conhecimento tradicional do patrimônio genético é, talvez, o maior dos retrocessos entre os muitos que caracterizam a nova legislação. Ao deixar de reconhecer o papel que os detentores de conhecimento tradicional – povos indígenas, pequenos agricultores e comunidades tradicionais – desempenham nos processos que geram e mantêm a biodiversidade, o novo marco legal, além de afrontar os direitos desses povos e comunidades, não criará condições para que a repartição de benefícios funcione como uma estratégia de conservação da biodiversidade.
Ao lado da conservação e do uso sustentável, a repartição de benefícios é um dos pilares da Convenção da Biodiversidade (CDB), tratado internacional que rege o assunto e que foi ratificado pelo Brasil. A ideia é que, ao repartir de forma justa e equitativa os benefícios derivados do uso da biodiversidade, parte desses benefícios retornaria para os países onde a biodiversidade está e para as comunidades detentoras dos saberes ligados à biodiversidade, ajudando e fomentando sua manutenção. Se nada disso acontecer, estaremos, mais uma vez, perdendo uma significativa oportunidade de gerar inovação a partir da nossa biodiversidade e do conhecimento tradicional intrínseco a ela. Além disso, continuaremos perdendo a possibilidade de assegurar recursos e apoio para a conservação da biodiversidade e da diversidade sociocultural do nosso país.
O que são os recursos genéticos e conhecimentos tradicionais?
Os recursos genéticos da biodiversidade são encontrados em animais, vegetais ou micro-organismos, por exemplo, em óleos, resinas e tecidos, encontrados em florestas e outros ambientes naturais. Já os recursos genéticos da agrobiodiversidade estão contidos em espécies agrícolas e pastoris. Comunidades de indígenas, quilombolas, ribeirinhos e agricultores familiares, entre outros, desenvolvem e conservam, por décadas e até séculos, informações e práticas sobre o uso desses recursos. Esses são os chamados conhecimentos tradicionais.
Tanto o patrimônio genético quanto os conhecimentos tradicionais servem de base para pesquisas e produtos da indústria de remédios, sementes, gêneros alimentícios, cosméticos e produtos de higiene, entre outros. Por isso, podem valer milhões, bilhões em investimentos. O Brasil é a nação com maior biodiversidade do mundo e milhares de comunidades indígenas e tradicionais, daí ser alvo histórico de ações ilegais de biopirataria, crime que a nova lei deveria coibir e punir.
O que é a “repartição de benefícios” prevista na nova lei?
A Convenção da Diversidade Biológica (CDB), tratado internacional que regula o tema dos recursos genéticos e conhecimentos tradicionais, prevê que quem usa e explora economicamente os recursos genéticos e conhecimentos tradicionais deve remunerar, de forma “justa e equitativa”, os detentores desses recursos e conhecimentos, reconhecendo-os como instrumento valioso de produção de saber.
O que é o “consentimento livre, prévio e informado”?
“Consentimento livre, prévio e informado” é a consulta feita a quem detém os recursos genéticos e conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade – as comunidades indígenas e tradicionais – sobre seu uso e exploração. Todo uso que se pretende fazer desses recursos e conhecimentos deve ser precedido de um processo de discussão com a comunidade que os detém, de modo que ela seja informada, conforme sua língua e costumes, do que se pretende fazer, dos produtos e vantagens a serem obtidos, garantindo a ela tempo suficiente para entender essas informações e ser capaz de decidir e autorizar, ou não, de forma autônoma, o uso pretendido. Se a consulta implicar uma autorização de uso e, por sua vez, ela significar o desenvolvimento de um produto ou processo com uso econômico, pode também gerar um contrato de repartição de benefícios entre as partes. (ISA/ #Envolverde)
* Nurit Bensusan, especialista em Biodiversidade e coordenadora adjunta de Política e Direito do ISA.
** Publicado originalmente no site ISA.