por Marcio Astrini, do Observatório do Clima –
Os pecuaristas da Irlanda certamente celebrariam com uma boa cerveja preta as reações de algumas organizações do agronegócio brasileiro à proposta de legislação europeia que veta a importação de commodities produzidas com desmatamento. Quanto mais o Brasil defende seu direito de destruir a floresta e emitir carbono, mais o lobby agrário europeu encontra motivos para discriminar produtos como a carne e a soja brasileiras.
Já escrevemos espaço que Jair Bolsonaro, ao permitir a explosão do desmate, atua como melhor amigo dos protecionistas que querem barrar o acordo comercial entre a UE e o Mercosul. A proposta da nova legislação europeia agrava a situação: como mostrou O GLOBO na semana passada, US$ 50 bilhões em exportações brasileiras estão hoje na linha de tiro, e as razões são predominantemente ambientais.
A Europa pode ser só o começo. Na COP26, em Glasgow, China e EUA, os dois principais parceiros comerciais do Brasil, produziram uma declaração em que se comprometem a aplicar leis contra o desmate importado, de forma a cumprir a meta estabelecida na Declaração de Glasgow Sobre Florestas de interromper a perda florestal no mundo até 2030. Como tudo mais que envolve a China, a linguagem do texto é nebulosa, mas se há uma coisa que aprendemos sobre a ditadura asiática é que ela costuma cumprir o que assina. Os EUA debatem hoje a extensão de uma lei já existente sobre madeira ilegal para abranger outras commodities. Entre nossos consumidores e concorrentes, desmatamento zero está virando o novo normal. Para nós, isso deveria ser uma oportunidade a agarrar.
Segundo o MapBiomas Alerta, menos de 1% dos imóveis rurais brasileiros tiveram desmatamento em 2020. Um estudo da UFMG na revista Science já mostrou que apenas um quinto das exportações brasileiras de carne e soja estão contaminadas por desmatamento. A esmagadora maioria do setor rural vive sem crime ambiental e não deveria hesitar nem por um segundo antes de enquadrar a minoria que ameaça os ganhos de todos.
O que se viu nos últimos dias, porém, foi uma mistura de pacto de silêncio e confissão de culpa. Dois ministros do regime, Tereza Cristina (Agricultura) e Carlos França (Relações Exteriores), criticaram a proposta europeia como “protecionismo climático”. E duas organizações do agronegócio, a Associação Brasileira dos Produtores de Soja e a Sociedade Rural Brasileira, escreveram notas histéricas acusando os europeus de violar a soberania do Brasil ao exercer seu direito de decidir o que vai e o que não vai para o seu prato. Não se viu a mesma indignação quando os irresponsáveis do Planalto levaram o desmatamento da Amazônia ao pior número dos últimos 15 anos.
A elite do atraso rural tem ataques públicos toda vez que os ventos da economia internacional ameaçam seu padrão de predação. O que essas pessoas querem? Que o mundo aceite passivamente o desmatamento que ameaça o futuro climático de toda a humanidade, alimentado por um governo ecocida?
É claro que setores protecionistas da UE buscam surfar nas discussões sobre a proibição do desmatamento importado. Mas, ao contrário do que faz crer a banda podre do agro brasileiro, os protecionistas europeus amam desmatamento. Cada árvore que tomba na Amazônia é mais uma arroba de carne e um galão de leite que eles vendem por lá sem concorrência. A clientela entendeu que comprar comida produzida à custa de altas emissões de CO2 desnecessárias e de violência rural não é eticamente aceitável. Não há mais espaço para desmatamento, seja ele legal ou ilegal, nas cadeias produtivas do mundo. E é essa a razão da proposta de nova legislação do bloco.
Ao brigar com o freguês em vez de limpar as próprias commodities, o governo brasileiro e seus comparsas realizam o sonho de todo protecionista. Deve dar para ser mais burro do que isso, mas é difícil imaginar como.
Márcio Astrini tem ampla experiência em Políticas Públicas e no funcionamento dos poderes Executivo e Legislativo, tendo atuado nas áreas de políticas sociais, meio ambiente e planejamento público. Trabalhou por 13 anos no Greenpeace, onde foi coordenador das campanhas de Amazônia, de Clima e de Políticas Públicas. Desde 2019 integra o comitê de coordenação do Observatório do Clima, onde atualmente exerce o cargo de secretário-executivo
(Publicado originalmente em O Globo)