Por Neuza Árbocz –
Quem seria capaz de terminar seu prato de comida ao saber que seu delicioso tempero teve origem em ingênuas pessoas recrutadas no Maranhão e mantidas como escravas em plantações em Santa Catarina?
Pois esta realidade impensada para tempos hiper conectados como os de agora foi descoberta no pequeno município de Ituporanga, em Santa Catarina, distante apenas 163 km da badalada Florianópolis. Com pouco mais de 330 km2 e 22 mil habitantes, a cidade se apresenta como a “capital nacional da cebola” e local de um “povo trabalhador, educado, organizado, com amor por todos e por tudo que os rodeiam”, como descreve o site oficial de sua prefeitura.
Este amor, contudo, passou longe dos fazendeiros que prometeram pagar R$ 6 a cada mil mudas plantadas do bulbo a jovens atraídos por carros de som na também pequena localidade de Timbiras, no Maranhão. Empolgados com a oportunidade, os rapazes pagaram R$ 50,00 para viajar por seis dias dentro de um ônibus e desembarcar a 3,3 mil quilômetros de casa em uma plataforma, onde foram recolhidos ali mesmo na rodoviária por patrões afoitos pela mão de obra barata. “Eu quero os dez que eu comprei”, ouviram, atordoados, um dos contratantes dizer.
Levados diretamente para propriedades rurais, viram-se colocados em péssimas condições de moradia e trabalho, além de sofrerem descontos por alimentação e equipamentos fornecidos que inviabilizavam seus ganhos. Graças à denúncia de uma mãe à Rede de Ação Integrada de Combate à Escravidão, informada da situação via whatsapp pelo filho, nove deles foram resgatados em 04 de agosto passado. O restante do grupo ainda não foi encontrado. Nem os dez alegadamente “comprados”.
“Trabalhadores nos disseram que assim que os ‘homens’ souberam da fiscalização em uma das fazendas, mandaram todos saírem da lavoura”, esclareceu o auditor fiscal Henrique Mandagará, que participou da ação, conforme publicou o jornalista Leonardo Sakamoto em sua coluna no UOL.
Na mesma semana, conforme apurou Sakamoto, outros 18 trabalhadores, trazidos estes do Ceará foram resgatados em situação análoga na mesma Ituporanga, sugerindo a existência de um sistema de recrutamento estabelecido.
A culpa é da “xepa”?
Como entender este comportamento exploratório da vida alheia? A humanidade já não sofreu tragédias suficientes para ter a empatia como bússola nas relações? Desconhecem os atores destes abusos a alegria de montar negócios que geram prosperidade – ou ao menos remuneração justa – a todos os envolvidos?
Como se olham diante do espelho ao saber que aqueles que garantem seu ganho dormem sem cobertas, no chão, com goteiras sobre suas cabeças, em noites que batem em 2oC no inverno?
Seria possível entender tanta crueldade pelo prisma da velha ‘luta de classes’ definida por Karl Max?
“Classe”ainda explica a parasitagem sobre seres semelhantes nesta época em que os colaboradores são considerados o ponto chave de toda empresa bem sucedida e a Consciência humana parece ter dado saltos desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, até a Carta da Terra, em 2000, na qual se almeja cuidar bem não apenas de si, mas de todas as espécies e ambientes, ou seja, de toda a Comunidade da Vida?
Crueldade com o diferente, apenas por este ter menos acesso ao capital e à instrução formal, ainda cabe junto de uma humanidade que atravessou fases de maior rigidez social, onde seria impossível montar um pequeno negócio em sua garagem e se tornar milionário sem pertencer à dita ‘nobreza’ ou à elite de governos ditatoriais? Ou onde a emigrante colombiana, pobre, Diana Trujillo que chegou aos EUA com U$ 300 dólares e pagou seus estudos com faxina, hoje, dirige a missão à Marte da Nasa? Ou onde o indígena Eloy Terena, chega ao pós-doc em Paris após se formar advogado com bolsas no Brasil, e consegue uma defesa histórica, via audiência online, para os povos indígenas?
Estamos mesmo divididos nas emboloradas classes recortadas por critérios econômico-sociais ou esta explicação já não dá conta da complexidade atual?
A propriedade onde os nove maranhenses foram libertados tinha apenas 6 hectares – isto é, menor que 6 campos de futebol. Quanto ganha seu proprietário com todo o mal imposto? Quanto sobra, no fim da lavoura, no seu bolso? Seria ele uma ‘classe’ muito diferente dos que tentaram a sorte ao se engajar para o trabalho no campo? Ituporanga reúne 1.100 agricultores, que competem entre si e com outras localidades, para colocar sua produção no mercado. Juntos, são responsáveis por 110 mil toneladas de cebola por ano (2012), colhidas de outubro a dezembro, mas comercializadas de forma escalonada para alcançar melhor preço.
Quantos destes apelam para mão de obra escravizada para alcançar alguns reais (ou seriam centavos?) a menos no quilo de seus produtos? Seria o afã dos consumidores em pagar o mínimo possível responsável por esta exploração revoltante? Esta é uma forma distorcida de aliviar os criminosos.
Se não existe consciência no empregador, todos sabem, contudo, que as leis atuais proíbem a escravidão ou condições semelhantes. Ser honesto ou desonesto não depende de classe alguma. Haja visto que existem golpistas em todas as camadas. Cabe dizer o mesmo quanto a ser humano ou desumano.
As fronteiras entre classes são menos claras do que as entre bem intencionados e mau intencionados. Vale lembrar que podemos contemplar décadas de iniciativas filantrópicas, que se cansam até de “enxugar gelo” ao buscar transformar a realidade de quem vive e procria na escassez e vulnerabilidade. Também temos, no mundo e no Brasil, um crescente setor de negócios de impacto. Além de centenas de fundações e correntes como o movimento dos bilionários brasileiros unidos para difundir a cultura de doação que já disponibilizou mais de R$ 6 bilhões desde o início da pandemia atual do Coronavírus para combater seus efeitos negativos.
Precisamos reforçar cadeias justas de produção através do nosso consumo. Correto. Contudo, toneladas de cebolas se diluem na logística de distribuição. É difícil rastrear de onde vem aquela que vai parar em nosso prato. A não ser que façamos parcerias com famílias rurais, como idealizou no início dos anos 2000, Luiz Geraldo de Oliveira Moura, criador do NEPA – Núcleo de Ensino e Pesquisa Aplicada – com sua Aliança Social. Eventos como este tornam ainda mais vital engajar-se nos movimentos de agricultura urbana ou de compras diretas de produtores, bem conhecidos, abertos a visitas frequentes de seus clientes.
Encontre seu grupo e engaje-se!
#Envolverde