Por Patrícia Kalil e Vandria Borari, especial para a Envolverde –
Participamos do Fórum Global do Pacto de Milão sobre Política Alimentar Urbana no século XXI, que aconteceu pela primeira vez na América Latina, no Rio de Janeiro, entre 16 e 19 de outubro. O pacto é um acordo internacional não vinculativo “concebido pelas cidades para as cidades” para que as prefeituras se preparem para alimentar suas populações nas próximas décadas, garantindo segurança alimentar local num planeta em crise climática e de saúde pública. Essa preocupação deve recair nas administrações municipais, uma vez que a maioria da população do planeta hoje vive em cidades.
O pacto foi lançado em Milão, em 2015, alinhado com o Acordo de Paris e a Agenda 30, dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU. Hoje, o pacto já conta com mais de 240 cidades signatárias de 78 países. Essas prefeituras se apoiam no desenvolvimento de sistemas alimentares urbanos mais sustentáveis, definindo diretrizes, recomendações, promovendo cooperação entre cidades e o intercâmbio de melhores práticas. Isso porque seus prefeitos entendem o papel da prefeitura de planejar o futuro das cidades e a urgência de desenvolver sistemas alimentares sustentáveis locais enquanto o mundo se adapta e tenta mitigar os sérios impactos das mudanças climáticas.
Não é de se estranhar que a Europa tenha o maior número de prefeituras comprometidas com essa mudança de paradigma. Até agora, 98 cidades européias já assinaram o pacto e estão desenvolvendo diagnósticos, planos e políticas públicas para fomentar a produção local de alimentos, garantindo resiliência do sistema alimentar biodiverso, acessível, inclusivo, que fortalece um fervilhante mercado local mais saudável e menos dependente da agroindústria de alimentos ultraprocessados e de baixo valor nutricional. Na América Latina, 27 prefeituras já aderiram ao acordo internacional, mas nenhuma delas é da região amazônica.
Se realmente há uma preocupação global em salvar a Amazônia, é fundamental que os compromissos do pacto sejam disseminados entre as prefeituras da região Norte, que permanecem sem acesso a essas informações e estão sendo engolidas pela agroindústria. Transnacionais e grandes poluidores da indústria alimentícia vem avançando de forma violenta sobre a floresta, substituindo biodiversidade por monocultivo de soja, criação de gado, enquanto impõem uma alteração alimentar empurrando produtos ultraprocessados em comunidades tradicionais. Neste sentido, urgimos que o comitê diretivo do pacto na América Latina promova um congresso convidando todas as prefeituras das grandes cidades amazônicas para apresentar este indeclinável acordo internacional.
Durante a pandemia da Covid -19, com o isolamento social, ficou evidente que o atual modelo de produção e distribuição de alimentos agravou a insegurança alimentar em todo o país, mas em especial nos territórios indígenas e de comunidades tradicionais na Amazônia.
Imazon – A região norte do país vem sofrendo acelerado processo de desmatamento, com a invasão também de transnacionais do setor agroindustrial
O descaso e a demora do governo federal ao enfrentamento da covid criou uma rede humanitária entre governos locais, organizações não governamentais, organizações de base comunitária e indígenas. Durante o isolamento social na pandemia foram distribuídas cestas básicas com materiais de higiene, uma ação emergencial que pudesse atender as comunidades mais vulneráveis.
Por falta de políticas públicas de segurança alimentar por parte do governo federal que pudesse garantir uma alimentação saudável e nutritiva, na pandemia, as ajudas humanitárias potencializaram o consumo de produtos ultraprocessados sem valor nutricional que geram dependência, em detrimento de fortalecer o modo de produção e alimentação local e comunitária já existentes nos territórios.
A produção agroecológica é o caminho para a segurança alimentar, com alimentação adequada, segura, local, diversificada, justa, saudável e nutritiva. A agricultura familiar é a principal atividade e é responsável pela soberania alimentar das comunidades tradicionais, é necessário vontade política local para a criação de políticas públicas que potencializam a soberania alimentar nos territórios indígenas e comunidades tradicionais na Amazônia.
O Município de Santarém, no estado do Pará, uma das regiões da Amazônia de expansão do agronegócio, adotou um sistema agrícola de grande escala que faz o uso indiscriminado de agrotóxicos, desmata a floresta e causa dano irreparável aos povos da floresta. Na cidade está instalada uma transnacional, a Cargill, uma das maiores empresas de alimentos processados do planeta, contrapondo os sistemas agroecológicos existentes na região.
Santarém é um dos municípios da Amazônia que conquistou o selo do Programa dos Municípios Verdes. Essa semana, a prefeitura participou de um grande evento na Argentina sobre as mudanças climáticas, que reúne prefeitos da América Latina e Caribe. A pergunta que fica para a prefeitura é sobre o que foi apresentado sobre as ações reais de enfrentamento das mudanças climáticas no município? Quais são as políticas públicas para o enfrentamento da crescente insegurança alimentar e desmatamento na região?
É urgente que Santarém e as prefeituras das grandes cidades amazônicas conheçam o Pacto de Milão e que tenham vontade política para implementarem e desenvolverem sistemas alimentares mais sustentáveis, de modo a aderirem às recomendações do pacto, que possam melhorando a gestão da água (residual) e sua reutilização, mapeando, apoiando e fomentando os circuitos curtos agroalimentares, promovendo redes para promover atividades das comunidades de base.
Saímos do Fórum Global com esse questionamento: se o mundo está realmente preocupado em proteger a Amazônia em pé, que cidades já adiantadas na implementação do Pacto de Milão e o comitê diretivo do pacto na América Latina precisam atuar também de forma pró-ativa, envolvendo prefeituras e explicando que a mudança de paradigma é inevitável. O futuro é local, ancestral e verde.
Leia o Quadro-Geral do Pacto de Milão em Português:
https://bit.ly/3eJMdhA
*Crédito da imagem destacada: Plenária com os Comitês Diretivos Regionais de prefeituras que já fazem parte do Pacto de Milão
#Envolverde