Por Roberto Savio, da IPS –
Roma, Itália, maio/2015 – O “Ocidente” é um conceito que prosperou durante a Guerra Fria (1947-1991). O Leste personificava o mal contra o qual todos os países democráticos – leia-se Ocidente – estavam convocados para combater.
Recordo da minha discussão em 1982 com Elliot Abrams, subsecretário de Estado durante o governo norte-americano de Ronald Reagan. Abrams afirmou que nesse momento da história seu país encarnava o autêntico Ocidente, enquanto a Europa era um aliado vacilante que, chegado o caso, não estaria disposto a participar de uma guerra contra a já extinta União Soviética.
Quando tratei de explicar-lhe que a denominação Oriente-Ocidente remonta à época romana, muito antes de existir os Estados Unidos, ele me interrompeu para afirmar que o conceito contemporâneo de Ocidente inclui os que estavam contra o império soviético, e os Estados Unidos eram o único poder capaz de liderá-los.
A presidência de Reagan (1981-1989) mudou o curso da história, ao se colocar contra o multilateralismo, a Organização das Nações Unidas (ONU) e a qualquer ação contrária aos interesses fundamentais dos Estados Unidos.
O fato de o “destino manifesto” dos Estados Unidos o converter em porta-voz da humanidade a ocorrência de que Deus era norte-americano foram as bases da retórica de Reagan. Em uma declaração delirante, chegou ao extremo de afirmar que os Estados Unidos eram o único país democrático do mundo.
Depois do fim da Guerra Fria, o presidente George W. Bush (2001-2009) retomou a retórica de Reagan. Declarou que ele era presidente porque Deus assim o quis e justificou a necessidade de sua intervenção no Iraque, apesar da comprovada falsidade de sua denúncia sobre a posse de armas de destruição em massa por parte do ditador Saddam Hussein.
Desta maneira, Bush teve uma responsabilidade indireta na criação do grupo radical Estado Islâmico (EI).
Tudo isto começa no Iraque. O primeiro governador imposto após a invasão dos Estados Unidos em 2003 foi o tenente-general Jay Garner, que não durou muito tempo porque suas ideias sobre como reconstruir o Iraque foram consideradas extremamente indulgentes. Foi substituído pelo diplomata Paul Bremer.
Bremer tomou duas decisões fatais: eliminar o exército iraquiano e expulsar da administração pública todos os membros do Partio Baath, que Saddam liderava, no poder desde 1979 até a invasão. Assim, deixou milhares de oficiais e funcionários sem trabalho e descontentes, e uma administração muito ineficiente.
Agora se sabe que a mente por trás da criação do EI foi Samir al Abed Khlifawi, coronel dos serviços secretos da Força Aérea Iraquiana. Os detalhes de como Khlifawi planejou a ocupação de uma parte do Iraque e da Síria foram divulgados por Der Spiegel. O semanário alemão teve acesso aos documentos encontrados após sua morte e que revelam uma organização fanática, mas também fria e calculista.
Depois da invasão do Iraque Khlifawi foi capturado pelos norte-americanos. Na prisão estabeleceu relações com outros oficiais iraquianos, todos eles sunitas, e começou a planejar a criação do EI, que agora conta com numerosos ex-oficiais do exército do Iraque em suas fileiras. Sem a fatídica decisão de Bremer, Khlifawi provavelmente teria continuado no exército iraniano.
Também se deve recordar que depois do fim da Guerra Fria a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) perdeu sua razão de ser. Sua dissolução teria sido lógica, mas foi mantida viva pela guerra contra a Sérvia (1999) e agora está convertida no braço armado do Ocidente e executora de suas guerras.
Segundo o informe “Os custos das guerras”, elaborado por acadêmicos do Instituto de Estudos Internacionais Watson, da Universidade Brown, dos Estados Unidos, o terrível custo da invasão iraquiana foi de US$ 2,2 trilhões no período 2003-2013, isso sem falar dos 190 mil mortos. Ao se acrescentar o Afeganistão, chega-se à assombrosa quantia de US$ 4 trilhões.
Se tivesse refletido depois dessa experiência, a Europa teria desistido de invadir países árabes e de agravar seu difícil balanço financeiro. Mas, a Europa continua empenhada em conseguir a desestabilização do regime de Bashar al Assad na Síria, o que provocou a expansão da militância jihadista, 220 mil mortos e cinco milhões de refugiados.
No caso da Líbia, a Europa interveio por insistência do presidente francês, François Hollande, e do primeiro-ministro britânico, David Cameron, ambos movidos por razões eleitorais, com o objetivo de eliminar Muammar Gadafi, e depois abandonar o país à sua sorte.
Por alguma razão, a Europa sempre caminha atrás dos Estados Unidos, sem maior análise dos problemas. O caso da Ucrânia é o último destes episódios de sonambulismo.
A Ucrânia foi convidada a se unir à União Europeia (UE) e à Otan, provocando o paranóico presidente da Rússia, Vladimir Putin, que conta com o apoio quase unânime de seu povo, para que atue firmemente e resista ao cerco que o Ocidente está criando em torno das fronteiras da ex-república soviética.
Um grande problema é que a maioria dos europeus desconhece o mundo árabe. Há alguns dias, a policia italiana desmantelou uma célula jihadista na cidade de Bérgamo. Um dos presos era um imã. Mas, nenhum dos meios de comunicação que denunciaram uma ameaça islâmica que incluía o planejamento de ataques contra o Vaticano teve o trabalho de indagar a qual corrente do Islã pertence o religioso.
O imã pregava de acordo com a versão mais fundamentalista do Islã, o wahabismo, originado no século XVIII, que é o credo oficial da Arábia Saudita. Essa visão religiosa é semelhante à adotada pelo EI, embora isso não signifique igualar terrorismo e wahabismo. Pode-se dizer que, embora todos os terroristas sejam wahabies, nem todos os wahabies são terroristas.
A Arábia Saudita já gastou US$ 87 bilhões na promoção do wahabismo fora do reino, financiando a fundação de 1.500 mesquitas, todas com pregadores wahabies.
Junto com outros países do Golfo, continua destinando cerca de US$ 3 bilhões ao ano para financiar grupos jihadistas na Síria. Isto converteu Assad em um aliado tático obrigado pelo Ocidente, que terminou por aceitar a premissa: melhor nós do que o caos.
Agora o debate é o que fazer na Líbia, e a Otan considera várias opções militares. Por sorte, nesta ocasião o presidente norte-americano, Barack Obama, não quer intervir militarmente. Porém, os 28 países da UE, que raramente se põem de acordo, debatem em função de seus próprios interesses nacionais, por isso não se pode descartar uma intervenção militar.
Porém, diariamente milhares de refugiados tentam cruzar o mar Mediterrâneo para alcançar a Europa. Estima-se que já morreram mais de 20 mil pessoas nessas tentativas. A dramática situação acaba fortalecendo o apoio popular aos partidos xenófobos europeus, cuja estratégia se baseia na exploração do medo e na rejeição aos imigrantes.
Na realidade, para continuar sendo competitiva a Europa necessita do ingresso de 20 milhões de pessoas, segundo projeções da ONU. Lamentavelmente, no momento isto é politicamente impossível. Envolverde/IPS
* Roberto Savio é fundador da agência IPS e editor de Other News.