por Ulisses Capozzoli* – 

Não é de hoje que os Waiãpi, do tronco linguístico Tupi-Guarani, enfrentam invasões de garimpeiros em terras não muito distante da localidade de Serra do Navio, no Amapá, onde, nos anos 1940, foi descoberto manganês, rapidamente exaurido. Com o fim das reservas a localidade correu por algum tempo o risco de se tornar uma cidade fantasma. Se não chegou a tanto, por ali o tempo é formado de passado, sem a contrapartida do futuro. Um tempo que existe pela metade, como se isso fosse possível.

Visitei Serra do Navio por volta de 1992, na companhia de um pequeno grupo de jornalistas, depois de uma passagem por uma aldeia Waiãpi. Por mim, teria dormido ali. O cacique Wai Wai, nome que homenageia outro povo indígena, do tronco Caribe ─ espalhado por uma área que se estende por Roraima, Amazonas e Pará ─ nos convidara para uma festa que haveria naquela noite. Mas o grupo estava mais interessado no conforto oferecido pelo que sobrara da empresa de mineração e o convite do cacique não mereceu mais que uma delicada declinação.

Pode parecer que índios são todos um só. Não são. Há uma enorme diversidade de povos, línguas, costumes e aspectos físicos. Mais de 200 línguas e diferentes estilos. Nem todo índio tem arco e flecha, ao contrário do que pode parecer. Alguns usam borduna, como os Korubo, chamados de “Caceteiros” que vivem no Vale do Javari, afluente do Solimões, antes que ele se junte ao Negro para formar o Amazonas. Populações indígenas, com cultura diversa e fascinante são uma das riquezas antropológicas do Brasil, uma das mais ricas da Terra. Já avançado no século 21, o Brasil ainda dispõe de sertanistas para contato com um número significativo de povos isolados. Não que nunca tenham sido contatados, desde que Cabral pôs os pés por aqui. Tiveram experiências amargas e optaram por se abrigarem na proteção da floresta distante, caso dos Korubo. Mas são, cada vez mais, ameaçados por garimpeiros, madeireiros e pescadores, agora, mais que nunca, com licença explícita para matar.

Os Waiãpi do Amapá, uma projeção do Brasil no hemisfério norte, têm parte dos “parentes” como os índios costumam dizer, na Guiana Francesa. Onde são considerados “desempregados” (“chomages”) e recebem um salário do governo por essa condição que assegura à França resquícios de um antigo colonialismo. São tidos como “ricos” pelos Waiãpi brasileiros por terem barcos e outros equipamentos. Mas também são alcoólatras, ao contrário dos brasileiros, fieis à uma cultura milenar.

Nesses últimos dias uma aldeia dos Waiãpi foi invadida por garimpeiros, como aconteceu muitas outras vezes, e, em todas elas, repelidos. Desta vez os invasores chegaram com mais segurança, com amparo no pensamento medieval do presidente, sem noção do que é um índio, entre a falta de noção generalizada de que ele se ressente. Um líder foi morto e isso aterroriza índios de qualquer povo. Todos eles marcados por atrocidades que me fizeram chorar tantas vezes. Você pode se achar um durão, mas se mergulhar na floresta e ouvir relatos como eu ouvi, não terá outra alternativa para aliviar a alma: um choro incontido, fora da vista deles. Para não incomodar. Ainda mais.

Nessa antiga visita aos Waiãpi ouvi um relato de um antropólogo que se acreditava enfeitiçado por um índio da Guiana, interessado em levar para lá uma paixão brasileira, que ele não permitiu. Não me lembro o nome do antropólogo, mas não me esqueci nunca da narrativa dele numa sessão de ayuasca, na fase da “miração”, quando as cenas desenrolam frente aos olhos como se fosse numa tela de cinema.

Você pode pensar que é um antropólogo “místico” ou “equivocado”, mas esse é um juízo externo a uma cultura. Índios são seres confinados a um universo mágico, tido como inferior por “brancos” (nem tanto, na verdade somos quase todos “café-com-leite”) aprisionados num universo cartesiano e sem recurso da antropologia comparada para equilibrar fenômenos de universos paralelos. Se é que me faço entender na tentativa de me referir a diferentes realidades.

Os Waiãpi, lindos, gentis, inconfundíveis em suas longas tangas vermelhas, chamaram a Fundação Nacional do Índio (Funai) e a Polícia Federal, ambas subordinadas ao Ministério da Justiça, para repelir a invasão e o risco de mais mortes. Quase sempre foram ouvidos. Mas isso também mudou, como muda tudo no mundo, nem sempre para melhor. O Ministério da Justiça, encarnado num governo que enxerga a eliminação física e tortura como resolução de impasses, agora é mais lento. Com tendência a ser mais tolerante com invasores de terras indígenas. Mesmo eles, os índios, enfurnados na floresta, a casa grande em que vivem em harmonia com a Natureza, não têm paz. Foram alcançados pelo braço longo da violência que campeia nas cidades e no campo, mas pedem a cada um de nós, com um mínimo de consciência, que não deixemos repetir uma tragédia.

Mais uma, entre tantas.

*Ulisses Capozzoli é jornalista com uma vasta experiência em cobertura de temas científicos, sociais e ambientais.