Gilberto M. Amado* –
A Sociedade Internacional de Estudos Recifais (ISRS), em recente documento consensual encaminhado à 21 Conferência das Partes da Convenção sobre Mudanças Climáticas (Paris, 2015) e endossado pela equipe da Rede Abrolhos (www.abrolhos.org), alerta para a iminência de um colapso global dos recifes coralíneos – que estão entre os ecossistemas do Planeta com maior biodiversidade e produtividade. A elevação da temperatura da água do mar em regiões tropicais tem causado branqueamento e mortalidade maciça de corais, enquanto a elevação na concentração atmosférica de dióxido de carbono (CO2) tem causado a acidificação dos oceanos, acelerando a perda dos recifes coralíneos.
Nas últimas décadas, até 50% dos recifes coralíneos foram parcialmente ou totalmente degradados pela combinação entre estressores locais e mudanças globais. Caso o quadro não se reverta, a degradação será ainda mais extensa nas próximas duas décadas, com consequências ecológicas e socioeconômicas ainda incompletamente compreendidas.
Os serviços ecossistêmicos fornecidos pelos recifes coralíneos alcançam pelo menos US$ 30 bilhões/ano e garantem a sobrevivência de pelo menos 500 milhões de pessoas ligadas diretamente à pesca e ao turismo, por exemplo. Como resultado da destruição dos ecossistemas recifais, um quarto de todas as espécies marinhas está sob risco, e as perdas econômicas associadas deixarão centenas de milhões de pessoas expostas à fome e à pobreza.
Avaliações através de estudos de campo, experimentais e de observações através de sensoriamento remoto projetam que as mudanças nas concentrações de CO2 na atmosfera empurrarão a temperatura média global das áreas continentais e marinhas para mais de 2°C acima daquelas do período Pré-Industrial. Essa elevação está acima do limite de tolerância para organismos construtores, como corais e algas calcárias. O período de 2015-2016 compreendeu a maior anomalia térmica do registro instrumental (NOAA), tendo acarretado um episódio global de branqueamento de corais que afetou duramente os recifes de Abrolhos. Esse episódio foi detalhadamente documentado pela Rede Abrolhos, e suas consequências compreenderão um dos focos de pesquisa do grupo entre 2017-2019.
Os recifes brasileiros e Abrolhos
Os recifes brasileiros são áreas prioritárias para conservação da biodiversidade marinha, pois concentram elevado endemismo (~25% para peixes e 50% para corais construtores) em uma área relativamente pequena (5% dos recifes do Atlântico Ocidental) e muito ameaçada. O Banco dos Abrolhos (46.000 km2, área equivalente à da Paraíba) é formado por um mosaico de “mega-hábitats” (recifes rasos e mesofóticos, bancos de rodolitos, além de fundos de areia/lama) que concentram a maior biodiversidade marinha do Atlântico Sul1
O mapeamento dos hábitats do fundo marinho, realizado pela Rede Abrolhos, revelou uma grande heterogeneidade de fisionomias na plataforma continental do Banco de Abrolhos, muito maior do que aquela previamente conhecida. Tais fisionomias abrangem principalmente recifes estruturais na plataforma média e extensos bancos de rodolitos (nódulos calcários compostos principalmente por algas calcárias) na plataforma continental média e externa, entre outras formações únicas também descritas por nossa equipe2.
Os bancos de rodolitos de Abrolhos, embora tenham permanecido desconhecidos até a primeira década do Século 21, são responsáveis pela produção anual de 25.106.t de CaCO3, correspondendo a 5% da produção mundial por formações coralíneas3). A produção de CaCO3 e a significativa produção pesqueira artesanal, primariamente em ambientes recifais e bancos de rodolitos, são destacadamente serviços ecossistêmicos fornecidos pelo Banco dos Abrolhos.
Merece destaque, no contexto da caracterização do funcionamento dos ecossistemas recifais, o programa de monitoramento dos recifes coralíneos de Abrolhos. Desde 2001 são estimadas, anualmente, a diversidade e abundância de peixes e organismos bentônicos em 27 estações fixas distribuídas ao longo da região, incluindo diferentes regimes de manejo (Unidades de Conservação de Proteção Integral e Uso Múltiplo) e condicionantes oceanográficas (e.g. distância da costa, profundidade)4. Essas informações disponibilizadas (2001-2015) no “Brazilian Marine Biodiversity database” – BaMBa, têm permitido análises sobre o estado de conservação dos recifes, efetividade de áreas de proteção integral e de uso múltiplo e sobre doenças em corais.
Essa iniciativa foi sendo gradualmente expandida, e atualmente inclui uma série de variáveis adicionais (e.g. parâmetros físico-químicos e microbiológicos da água do mar) e conta com a participação de pesquisadores do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais e das universidades federais do Rio de Janeiro, Espírito Santo, ABC, Rural do Rio de Janeiro, Paraíba e São Paulo, além da Universidade de São Paulo e Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro.
Áreas Marinhas Protegidas
Apesar da importância desproporcional das mudanças climáticas no processo de degradação dos recifes, estudos recentes demonstraram a maior resistência e resiliência de recifes bem manejados, chamando atenção para a necessidade continuada de investimentos na implementação e manejo de Áreas Marinhas Protegidas (AMPs), complementada por medidas locais de gestão da pesca e controle da poluição. As AMPs são consideradas as principais ferramentas para responder à crise global dos recifes, mas a rede global ainda é espacialmente limitada e possui deficiências de delineamento e implementação, inclusive em Abrolhos5
Essa situação demanda subsídios científicos, tanto para a ampliação custo-efetiva e socialmente justa da rede de AMPs, quanto para seu manejo adequado, os quais vêm sendo aportados pela Rede Abrolhos na forma de publicações e relatórios enfocando o delineamento espacial de redes de AMPs, ações de extensão em conjunto com os gestores, e ações abrangentes de divulgação e comunicação. O projeto também vem viabilizando a participação continuada da equipe nos fóruns locais, regionais e nacionais afetos à temática das AMPs, particularmente as AMPs de Abrolhos e propostas de novas AMPs no Espírito Santo e na Cadeia Vitória-Trindade de montanhas submarinas.
O desastre de Mariana e Abrolhos
A geração de conhecimento e sua disseminação são elementos cruciais para ampliar as capacidades de adaptação e resposta, da sociedade e dos gestores públicos, frente ao cenário de crescente degradação ambiental e mudanças climáticas. Ressalta-se, nesse contexto, o desastre ocorrido na Bacia do Rio Doce, com epicentro em Mariana (MG), onde foram desmobilizados 50.106 m3 de rejeitos minerais, cujos efeitos estendem-se ao Banco dos Abrolhos e adjacências.
A equipe da Rede Abrolhos tem participado ativamente de ações de monitoramento dos efeitos dessa descarga de sedimentos contaminados na plataforma continental, incluindo as campanhas oceanográficas emergenciais nos navios Vital de Oliveira (Marinha) e Soloncy Moura (ICMBio) em 2016. Para o ciclo 2017-19 de execução do projeto estão previstas ações da Rede Abrolhos nas fozes dos rios Doce e Piraque-Açú, na Área de Proteção Ambiental (APA) Costa das Algas, no Refúgio da Vida Silvestre (REVIS) Santa Cruz e na área proposta como Parque Nacional Marinho (PARNAM) de Santa Cruz, expandindo a abrangência geográfica e o escopo da Rede Abrolhos, que passa a abordar, explicitamente, os efeitos do desastre de Mariana e as necessidades específicas dessas áreas e UCs marinhas, que são consideradas prioritárias no contexto do Espírito Santo.
Os “baselines” já gerados pelo projeto (e.g. recifes rasos e mesofóticos, bancos de rodolitos, sedimentologia) apresentam elevado valor agregado para o enfrentamento desse desafio, visto que são escassas as informações antecedentes ao desastre, particularmente na área marinha. As ações específicas previstas para essa área incluem levantamentos sonográficos e verificações in situ para caracterização da geobiodiversidade de recifes, bancos de rodolitos e depósitos sedimentares, com ênfase na caracterização da espessura, taxas de sedimentação e dinâmica sedimentar de áreas afetadas pelo desastre. Também estão previstos estudos complementares visando determinar assinaturas geoquímicas e mineralógicas da lama de rejeito e o estabelecimento de parcelas fixas de monitoramento na área marinha sob influência direta da descarga e suas adjacências.
A complexidade do Banco dos Abrolhos demanda aportes de informações de natureza multidisciplinar e longas séries de dados. As pesquisas em longo prazo propostas pela Rede Abrolhos são essenciais para que se possa compreender a dinâmica do maior complexo recifal do Atlântico Sul e ampliar a capacidade de resposta do país frente aos desafios climático-ambientais que estão se configurando em magnitudes sem precedentes. (ECO21/#Envolverde)
Fontes de financiamento da Rede Abrolhos: CNPq, CAPES FAPES, FAPERJ e ANP/Brasoil.
Notas:
1 – Para detalhamento veja Bastos et al. 2016 em abrolhos.org/artigos
2 – Para detalhamento veja Moura et al. 2013 em abrolhos.org/artigos/
3 – Para detalhamento veja Amado Filho et al. 2012 em abrolhos.org/artigos/
4 – Para detalhamento veja Francini-Filho et al. 2013 em abrolhos.org/artigos/
5 – Para detalhamento veja Edgar et al. 2014 em abrolhos.org/artigos/).
*Biólogo do Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro
Artigo escrito com a colaboração de:
Rodrigo L. de Moura, biólogo do Instituto de Biologia e SAGE/COPPE– UFRJ.
Alex C. Bastos, geólogo do Departamento de Oceanografia – UFES
Fernando C. Moraes, biólogo do Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro
Publicado Originalmente na Revista Eco21.