Sem5
Foto: Alberto Valadão/IABS

Pesquisa e difusão de conhecimentos fazem do Centro Xingó uma referência mundial em tecnologias sociais e políticas públicas de convivência em regiões semiáridas do mundo.

Por Dal Marcondes, da Envolverde

A grande seca de 1877 pode ter matado cerca de meio milhão de pessoas no Nordeste brasileiro. Esse cenário de tragédia levou o então imperador D. Pedro II a afirmar que gastaria até a última joia da coroa para garantir que jamais nenhum outro nordestino morreria de sede ou fome. A promessa caiu no vazio por mais de um século e, ainda hoje, a convivência das pessoas com o semiárido brasileiro é um desafio que necessita de um enfrentamento cotidiano. Algumas coisas, no entanto, mudaram. Enquanto durante todo o século 20 as sucessivas secas na região expulsaram milhões de pessoas em intermináveis correntes migratórias, neste século não apenas essas migrações foram drasticamente reduzidas, como em alguns casos, revertidas, com o retorno ao Nordeste de antigos moradores.

Nos últimos cinco anos o Nordeste vive uma das piores secas em 30 anos, mesmo assim não houve emigração em massa. Para entender esse novo cenário e ajudar na construção de conhecimentos que apoiem a uma nova abordagem sobre a seca foi criado o Centro Xingó de Convivência com o Semiárido, próximo à hidrelétrica de Xingó, e à cidade de Piranhas, no semiárido alagoano. Contando com o apoio da CHESF – Cia Hidrelétrica do São Francisco, o Centro Xingó atua sob a gestão do IABS – Instituto Brasileiro de Desenvolvimento e Sustentabilidade, que através de parcerias com universidades nacionais e estrangeiras, como a Universidade Politécnica de Madrid, vem criando um ambiente de referência para pesquisas sobre convivência com o Semiárido Nordestino. “O que está sendo feito aqui no interior de Alagoas pode ser a base de políticas públicas em diversas partes do planeta”, explica Luís Tadeu Assad, diretor presidente do IABS.

Os estudos de campo, que são realizados com apoio de pesquisadores brasileiros e espanhóis, tem foco no desenvolvimento de tecnologias sociais que ajudem a melhorar a qualidade de vida dos moradores da região. Para garantir a intensa troca de conhecimentos, no final de outubro o Centro Xingó realizou o 2º Seminário Internacional de Convivência com o Semiárido, um evento de três dias que antecedeu ao 2º Curso Internacional de Convivência com o Semiárido, de 02 a 20 de novembro. Nos três dias do seminário foram abordados temas como segurança hídrica, segurança alimentar, inserção produtiva e gestão do conhecimento, além de dos desafios que as regiões semiáridas têm para cumprir os Objetivos de Desenvolvimento Sustentáveis (ODS), metas de sustentabilidade definidas pela Organização das Nações Unidas (ONU) em setembro último.

Alguns estudos sobre as mudanças climáticas apontam que as regiões semiáridas do mundo, e também do Nordeste brasileiro, devem aprender a conviver com períodos ainda mais intensos de seca. Portanto, o domínio de tecnologias e comportamentos que permitam a convivência com a escassez são parte importante para a sustentabilidade das populações atingidas. É necessário ampliar os sistemas de captação de água, como as tecnologias de cisternas, a implantação de mecanismos que vão além de simplesmente garantir água para consumo das pessoas. O passo seguinte, e que tem sido implantado com sucesso em diversas regiões, é a coleta de água de chuva para irrigação de culturas resilientes à seca, algumas de subsistência, outras para garantir alimentos para a criação.

A região do semiárido brasileiro está inserida no bioma Caatinga, pouco valorizado pela mídia, mas muito rico em biodiversidade, além de ter plantas com uma grande característica de resiliência à seca e uma forte capacidade de regeneração, a região é rica em elementos que podem render elementos e substâncias úteis em produtos de biotecnologia, como cosméticos e remédios. Segundo Marcel Bursztyn, professor do Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília, a degradação desse habitat pela ação humana pode estar ajudando a destruir os elementos que poderiam garantir a sustentabilidade econômica e social da região. “Sociedades que abusaram da natureza entraram em colapso”, alertou em sua palestra de abertura do seminário. Polêmico, Bursztyn colocou o dedo em uma das questões chave da preservação da caatinga, a criação de bodes. Parte da cultura sertaneja, o bode está inserido na economia da região, no entanto, sua sobrevivência se deve à capacidade de comer absolutamente qualquer coisa que brote no solo seco do semiárido, reforçando o processo de desertificação da região. Nordestinos presentes protestaram, mas as evidências parecem apontar o bode como um grande predador da biodiversidade local.

Há uma mudança importante na abordagem da seca no sertão nordestino. Desde D. Pedro II se fala em obras “contra” a seca, projetos irrigados por verdadeiros rios de dinheiro e que deixaram poucos resultados de legado. Para o engenheiro florestal Francisco Campello, diretor do Departamento de Combate à Desertificação do Ministério do Meio Ambiente, um novo enfoque tem sido adotado em políticas públicas, o da “convivência” com o semiárido. “isso significa adotar práticas que se adaptam à realidade da região, buscar melhorar a vida através da adoção de medidas mitigatórias”, explica. E dá como exemplo a melhoria na construção de fogões de lenha, que não podem emitir fumaça dentro das casas, “Uma das mais importantes causas de doenças e mortes de mulheres no sertão é a contínua intoxicação por fumaça enquanto cozinham”, explica. Campello mediou o debate sobre a convivência do semiárido no contexto dos ODS.

Anos atrás a região do Cariri, no sertão cearense, era lembrada pela seca e pela música de Luiz Gonzaga. Hoje um avançado centro de pesquisa sobre o semiárido funciona na Universidade Federal do Cariri, de onde veio a pesquisadora e professora Poliana Lana Nunes Barreto, diretora de articulação institucional da UFCA. Para ela a presença de uma universidade no semiárido é a oportunidade de oferecer uma educação emancipadora. “Antes os estudantes tinham de deixar o semiárido para estudar e muitos nunca mais voltaram”, explica. “Agora podem estudar em cursos tradicionais, mas abordando temas de interesse para o desenvolvimento da região, realizando pesquisas que têm impacto positivo nas comunidades”, diz. As pesquisas realizadas na universidade se integram com outras políticas públicas de impacto.

Uma das atividades que mais produziu resultados em termos de fixação do homem ao campo e reduziu a fome e a mortalidade na região foi a implantação de cisternas para a captação de águas de chuva. Muitas organizações atuam na construção dessas cisternas, que mudaram a paisagem do semiárido, entre elas a ASA –Articulação Semiárido Brasileiro, uma das organizações mais antigas a atuar na região. Um dos coordenadores da entidade, Albani Vieira da Rocha, explica que o sucesso do modelo de cisterna vem da participação das comunidades na elaboração e implantação das unidades. “A convivência com o semiárido está baseada em estoques”, explica. Para ele é importante que as comunidades tenham uma reserva capaz de garantir as necessidades básicas para consumo e para a produção de alimentos.

Essa é também a opinião do coordenador de acesso à água do Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Vitor Leal Santana, que ressaltou a importância de programas de 2ª água, aquela captada não apenas para o consumo humano, mas para animais e para irrigação. “Essa é a água que permite uma atividade econômica que vai além da subsistência”, explica. Essa tecnologia tem uma importância vital não apenas no semiárido brasileiro, mas para todas as regiões do mundo que enfrentam problemas com a escassez de água. Segundo o pesquisador da Universidade Politécnica de Madrid, David Pereira Jerez, as política públicas de convivência que estão sendo desenvolvidas no semiárido brasileiro podem servir como referência na África e até mesmo na Europa, onde regiões mais secas tendem a se tornar ainda mais áridas por conta das Mudanças Climáticas. “Muitos dos conflitos hoje no mundo tem como pano de fundo a escassez hídrica”, conta.

Jerez acredita que as ações de transferência de conhecimentos são fundamentais para o sucesso de políticas públicas, seja entre atores de um mesmo país, como é feito no Centro Xingó, ou em cenários internacionais, como os acordos com universidades espanholas, que envolvem, além da Politécnica de Madrid, a Universidade Complutense, também de Madrid.

Sem10
Centro Xingó – 2º Seminário Internacional de Convivência com o Semiárido. Foto: Alberto Valadão/IABS

Os dois dias de debates levaram ao semiárido expertises distintas, como Renata Barreto, pesquisadora da COPPE UFRJ, que destacou a seca no Brasil nos últimos anos como o 5º maior evento climático do planeta. Para ela há uma disputa pela água e é preciso investir  mais em tecnologia para equilibrar o jogo entre os principais atores. “Enquanto o agronegócios utiliza 72% da água disponível, as pessoas precisam de apenas 6%, mas quando se fala em economia são as casas que sofrem mais”, conclui.

Cerca de 200 pessoas acompanharam os debates e puderam conhecer os ganhos das políticas de convivência com o semiárido que vêm sendo implantadas com apoio de diversas organizações acadêmicas, sociais e de governo. Programas de pesquisa como o da Universidade Federal Rural de Pernambuco, onde são trabalhadas qualidades de plantas do semiárido com potencial para a elaboração de antibióticos potentes, capazes de substituir alguns já contornados por superbactérias. A professora Márcia Vanusa da Silva conta que já foram feitos testes de laboratório com diversos princípios ativos de plantas da região com muito sucesso. “Os resultados são tão bons que já estamos atraindo a atenção de pesquisadores de universidades estrangeiras e talvez até de laboratórios multinacionais”, diz.

O cenário no qual atua o Centro Xingó de Convivência com o Semiárido é um vislumbre do que pode ser o futuro da região, com o desenvolvimento de ciência aplicada e ampliação do conhecimento através de colaboração e parceria. Para Luis Tadeu Assad a busca por difusão dos estudos realizados, através de trabalhos com estagiários e pesquisadores visitantes é uma vocação. “Precisamos ampliar conhecimentos e espalhar tecnologias sociais capazes de transformar a realidade dos sertanejos”, explica.

Assad conta que muitas escolas da região procuram o Centro Xingó para programas de estágio e que a ampliação da capacidade de atendimento está nos planos do IABS, mas que para isso será preciso também conseguir mais apoiadores. Para ele, uma das dificuldades é que o Brasil das capitais, das cidades ricas do sul/sudeste desconhece os impactos das ações de políticas públicas e tecnologias sociais sobre a qualidade de vida das populações do semiárido. “São quase 25 milhões de pessoas que vivem em área de influência do semiárido e da caatinga”, conta. Para ele essa região não pode continuar a ser tratada como um bioma de segunda categoria, as pesquisas mostram o potencial que a região tem e o investimento no Centro Xingó tem ajudado a demonstrar que a pesquisa e o trabalho de campo oferecem resultados de impacto na qualidade de vida na região. (Envolverde)