Como uma casquinha de noz no oceano da competitividade, a letra cursiva e muitas outras habilidades humanas vão ficando para trás enquanto a modernização sai na frente, possibilitando uma velocidade cada vez maior ao nosso desenvolvimento para que possamos comemorar cada vez mais rápido: “Finalmente, cheguei lá!”. “Mas, lá aonde?”
Por Maria Helena Masquetti –
Quando o homem pisou na lua, o mundo comemorou a grande conquista, mas a canção, nem tanto: “Poetas, seresteiros, namorados correi, é chegada a hora de escrever e cantar talvez as derradeiras noites de luar”. Porque sabíamos que, do encantamento natural humano pela descoberta, já pouco restava. Na verdade, a pegada registrada na superfície da lua, cumpria muito mais a função de uma logomarca, evidenciando a posse de quem chegou lá primeiro.
Já bem distante daquele momento histórico, outra notícia, à primeira vista não tão grandiosa, foi anunciada recentemente: “Estados Unidos abandonam a escrita de mão” *. Uma conseqüência natural do progresso na opinião de uns. Um risco para a formação da personalidade na opinião de outros. Para muitos educadores, um prejuízo ao desenvolvimento psicomotor ou, ainda, para os grafólogos, o fim de uma das mais sensíveis técnicas investigativas.
É possível que outros instrumentos como os jogos eletrônicos e tantos aplicativos possam substituir o exercício cerebral demandado pela escrita de mão. E é de se reconhecer também o quanto a digitação pode ser inclusiva para os que não podem se expressar pela escrita cursiva. Porém, há algo que a digitação não poderá reproduzir: a sensação viva de nossa presença. “Ah, isto deve ser da Maria!” ou “Esta letra é do Pedro!” Quantas vezes já não reagimos assim ao deparar com uma anotação num pequeno post it? Nossa letra nos identifica, nos representa, nos aproxima e pode até revelar nosso estado de espírito ao escrever.
Assim, o abandono da letra cursiva simboliza, sobretudo, o fim de outras manifestações sensíveis do homem, tal como ocorreu na grande conquista de 1969: ganhamos a lua, mas perdemos o luar. Prosseguimos ganhando em inovação, mas perdendo em poesia. Na modernização de nosso lazer, ganhamos o esplendor das vitrines dos shoppings enquanto perdemos o cheiro vivo das árvores, do gramado do parque, do suor das crianças extravasando energia e inventividade. Na praticidade das redes sociais, ganhamos o poder de falar com centenas de pessoas todos os dias enquanto perdemos o hábito (e o tempo) de abraçar quem está ao nosso lado. Nos medicamentos avançados, ganhamos a comodidade de ver crianças disciplinadas e atentas, mesmo a assuntos de que nem gostam, enquanto perdemos a aventura de vê-las desabrochar em sua forma única e mostrando a que vieram.
Como aprenderão as crianças a entender o que há além das palavras se não puderem imprimir, junto com elas, os garranchos da construção de sua identidade? Enquanto a tecnologia avança, ganhamos mais tempo. Tempo para escrever mais palavras por minuto, apagando nossas falhas e imperfeições. Tempo para sobrepujar o tempo humano que levaríamos para fazer as coisas, eliminando as emoções que “retardam” os prazos sempre para ontem das negociações.
Como uma casquinha de noz no oceano da competitividade, a letra cursiva e muitas outras habilidades humanas vão ficando para trás enquanto a modernização sai na frente, possibilitando uma velocidade cada vez maior ao nosso desenvolvimento para que possamos comemorar cada vez mais rápido: “Finalmente, cheguei lá!”. “Mas, lá aonde?”, precisamos perguntar. E onde terá ficado nosso coração? (#Envolverde)
* O Estado de São Paulo – 18/07/2011.
** Maria Helena Masquetti é graduada em Psicologia e Comunicação Social, possui especialização em Psicoterapia Breve e realiza atendimento clínico em consultório desde 1993. Exerceu a função de redatora publicitária durante 12 anos e hoje é psicóloga do Instituto Alana.