Por Ricardo Abramovay* –
A “Primavera Silenciosa” está completando 60 anos. Trata-se do livro de Rachel Carson, bióloga marinha norte-americana, inspiração fundamental para as lutas socioambientais contemporâneas e que mostrou, pela primeira vez, os impactos destrutivos globais do uso em larga escala de agrotóxicos.
Um dos capítulos desta obra clássica foi editado pela Penguin como um pequeno livro com o título “A Guerra do Homem contra a Natureza“. Nele há uma implacável e atualíssima crítica ao modelo que domina a agropecuária desde a Revolução Verde: “a monocultura (single-crop farming) não tira vantagem do princípio a partir do qual a natureza trabalha. A natureza introduziu grande variedade na paisagem, mas o homem manifesta uma paixão por simplificá-la”.
É por causa desta simplificação que a própria segurança alimentar global, hoje, está em risco. Paisagens agrícolas monótonas são muito mais suscetíveis que as diversificadas às secas, que, como mostrou o relatório do IPCC lançado há algumas semanas, já atingem, com frequência cada vez maior, 75% das áreas cultivadas do planeta.
A superação do atual modelo de oferta agropecuária está tomando basicamente dois caminhos. O primeiro converteu-se em política pública da União Europeia e é preconizado pelo relatório do IPCC. Trata-se da agroecologia, um conjunto de práticas que buscam eliminar o uso de fertilizantes químicos, de agrotóxicos e de antibióticos, por meio de técnicas que se apoiam no conhecimento das relações complexas entre plantas, animais, seres humanos e seu ambiente. Além de uma disciplina científica, a agroecologia é um movimento social com ampla influência nos métodos dos agricultores, nas atitudes dos consumidores (por meio, por exemplo de iniciativas como o Slow Food) e nas políticas agrícolas.
O segundo caminho da transição consiste numa nova onda de inovação tecnológica da qual as carnes cultivadas e a agricultura vertical são as mais importantes expressões. Este caminho, que não é incompatível com o primeiro, é abordado numa impressionante pesquisa que John Wilkinson, professor titular do CPDA/UFRRJ acaba de completar.
Wilkinson pesquisa há quatro décadas a interface entre tecnologias, comportamentos dos consumidores, políticas públicas e movimentos sociais ligados à agricultura e à alimentação. É com esta visão abrangente que ele apresenta um texto altamente informativo sobre a nova onda de inovação que marca o setor agroalimentar contemporâneo.
Desde que Rachel Carson publicou seu livro, houve basicamente três ondas de inovação. A primeira foi a Revolução Verde, liderada pelo setor público. A segunda corresponde à introdução dos transgênicos, com inovações que integravam a genética e a química, liderada pelo setor privado e que aprofundou a monotonia das paisagens agrícolas (e, portanto, os problemas que atingem hoje alguns dos grãos mais comercializados do mundo, como soja e milho). A inovação atual, terceira onda, é bem diferente das duas anteriores.
A primeira diferença está nos atores que a levam adiante. São basicamente startups, financiadas por capitais de risco vindos não tanto das empresas que dominam o setor agropecuário global e sim pelas big techs, bem como por empresas de energia. É que o foco destas inovações não passa fundamentalmente pela agricultura, pela criação animal e, portanto, pelas tradings que até hoje dominam o setor.
Tanto a agricultura vertical como as carnes cultivadas representam uma espécie de emancipação da alimentação contemporânea com relação à própria agricultura. A agricultura vertical já é uma realidade significativa. As carnes cultivadas dão ainda seus primeiros passos, mas devem crescer muito nos próximos anos.
Um dos traços mais interessantes desta nova onda é que as startups que lhe deram origem são frequentemente dirigidas por empresários veganos e cuja narrativa é muito próxima à dos que defendem a agroecologia. Não há agressão ao bem-estar animal, uma vez que as carnes são fabricadas em laboratórios a partir de células, sem a crueldade inerente às grandes concentrações e aos processos de abate. Tampouco há poluição derivada dos remanescentes do abate de animais ou utilização de medicamentos.
John Wilkinson mostra que, na onda de inovação dos transgênicos, a narrativa predominante subestimava a desconfiança pública com relação ao produto — e tratava a oposição aos organismos geneticamente modificados como fruto de ignorância. Agora é bem diferente e existe até uma organização, o Good Food Institute, responsável por elaborar uma narrativa que compatibilize as inovações representadas pelas carnes cultivadas (ou as que se baseiam em plantas) com as preocupações crescentes em torno da insustentabilidade da produção agropecuária contemporânea.
Na agricultura vertical, a energia e a iluminação são os recursos mais importantes. Não por outra razão as empresas de energia (General Eletric, Philips, Osram, entre outras) estão investindo no setor. E não se trata de uma produção aleatória, feita em apartamentos individuais (embora isso também exista). A Jones Foods, da Inglaterra, por exemplo, produz 420 toneladas ao ano de ervas e folhas com base em 17 níveis verticais, não aplica agrotóxicos e usa apenas controles biológicos. Seus produtos destinam-se à alimentação, mas também aos biofármacos e aos biocosméticos.
Uma empresa da Dinamarca produz 3.000 quilos diários de folhas verdes no espaço de um campo de futebol. Segundo seu diretor, com vinte campos de futebol iguais, a autossuficiência do país seria assegurada. Estas técnicas são um estímulo a que a agricultura seja internalizada nos ambientes urbanos. A China está especialmente empenhada em incorporar estas técnicas, cujo avanço já está inscrito em seu plano quinquenal.
A era da riqueza gerada pelo comércio global das grandes commodities agrícolas está terminando. O fim do que Rachel Carson chamou de “guerra do homem contra a natureza” vai assumir formas muito variadas. A agroecologia vai ganhar importância cada vez maior. Mas o estudo de John Wilkinson mostra que as carnes cultivadas e a agricultura vertical terão aí, ao que tudo indica, um papel estratégico.
*Ricardo Abramovay é Professor Sênior do Programa de Ciência Ambiental do IEE/USP. Foi Autor de “Amazônia: Por uma Economia do Conhecimento da Natureza” (Ed. Elefante/Terceira Via, São Paulo).
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