Opinião

Instinto de sobrevivência dita política no Brasil

Por Mario Osava, da IPS – 

Rio de Janeiro, Brasil, 20/12/2016 – Dezenas, ou provavelmente centenas, de legisladores e figuras em altos cargos do poder executivo do Brasil sabem que já começou a cair a guilhotina sobre suas carreiras políticas, mas continuam exercendo o poder como missão e possibilidade de salvação. Já estão na prisão alguns de seus colegas julgados por corrupção sem a proteção de um mandato parlamentar ou pela ocupação de altos postos executivos, o que não lhes dá fórum privilegiado, o que permitiria que fossem julgados apenas pelo Supremo Tribunal Federal (STF), onde os processos correm mais lentamente.

Os processos se tornaram maciços e concretos com a disposição para colaborar com a justiça de parte dos 77 diretores da construtora Odebrecht, que possui obras em outros 25 países e ramificações nas indústrias petroquímica, de armas, petroleira e agroindustrial. Esse batalhão de denunciantes já fez depoimentos iniciais que a Procuradoria Geral da República entregou no dia 19 ao STF, para que sejam validados, possivelmente em fevereiro, após a avaliação por uma equipe de juízes durante as férias de janeiro do Judiciário.

O núcleo do poder e da crise no Brasil. O presidente Michel Temer, Renan Calheiros, presidente do Senado e acusado de corrupção em 12 processos, e Rodrigo Maia, que preside a Câmara de Deputados e foi citado nas primeiras revelações de diretores da Odebrecht sobre supostos subornos a políticos. Foto: Beto Barata/PR

 

A perspectiva de que na prática fique demolido o sistema político alimenta o confronto entre os poderes do Estado. O Congresso tenta conter a ofensiva judicial com uma lei que pune os “abusos de autoridade”, depois que um magistrado do STF tentou destituir o presidente do Senado, Renan Calheiros, e outro anulou uma decisão da Câmara dos Deputados que “desnaturalizou” medidas anticorrupção propostas pelo Ministério Público.

Os parlamentares não podiam alterar o conteúdo básico de um projeto de lei que emana da iniciativa popular, assinado por mais de dois milhões de eleitores, segundo decisão do juiz Luiz Fux, cuja decisão preliminar, do dia 14 deste mês, obriga a um novo trâmite da proposta pelos deputados. Câmara e Senado recorreram ao STF pedindo para reconsiderar a sentença de Fux, com o argumento de que viola a independência e os poderes do Legislativo. Além disso, o projeto foi “formalmente” apresentado por quatro deputados, diante da dificuldade de validar as assinaturas populares.

Essa questão o Supremo Tribunal vai dirimir somente após o recesso que começa hoje e termina em 2 de fevereiro. Sentenças individuais, provisórias e pendentes de ratificação pelo pleno dos 11 ministros do STF se tornaram frequentes. Nessa crise, estão provocando corrosão na autoridade da máxima corte brasileira como última instância judicial e guardiã da Constituição.

“Vem de longe essa fragmentação de sua jurisdição, manifesta na exacerbação de decisões monocráticas (individuais dentro de um colegiado). Cada ministro atua como se representasse a própria corte”, em uma tendência que agora “atingiu seu apogeu”, apontou Oscar Vilhena, diretor da Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas, de São Paulo. Ele citou como últimos exemplos a sentença de Fux e outra de Marco Aurélio Mello, que afastou provisoriamente Renan Calheiros da presidência do Senado, diante de acusações por suposto desvio de dinheiro público para pagar a pensão de uma filha fora do casamento.

Alguém que esteja sendo processado penalmente não pode ocupar a Presidência da República, e, portanto, não pode encabeçar o Senado, porque nessa função poderia substituir o chefe de Estado em caso de ausência, argumentou Mello. Dois dias depois, no dia 7 deste mês, o STF desautorizou em sessão plenária essa decisão que não chegou a ser acatada. A sentença gerou protestos populares e dividiu ainda mais o Supremo.

As decisões individuais, sem urgência que as justifique, foram criticadas publicamente pelo juiz Gilmar Mendes, como sendo ditatoriais e ilegais. Mendes é conhecido por antecipar opiniões sobre matérias que ainda serão debatidas no STF e polemizar de forma agressiva com seus pares. Mas também foi autor de decisões monocráticas controversas, como a do dia 18 de março, que anulou a nomeação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva para o cargo de chefe do Gabinete Civil por suspeitar que ele buscava escapar das investigações por corrupção de que era alvo.

Por sua vez, os membros do gabinete ministerial são parte do grupo que goza de fórum especial. Gilmar Mendes também atrasou a decisão do STF que proibiu o financiamento empresarial de campanhas eleitorais, ao pedir vistas do processo para um melhor exame, em abril de 2014, e emitir seu voto apenas um ano e meio depois. Sua posição foi claramente dilatória, porque a sentença já tinha maioria de seis votos a favor.

“É compreensível que os ministros desejem exercer o máximo de poder possível, é a natureza humana. Mas o deslocamento do poder do colegiado para os gabinetes individuais passou dos limites razoáveis, provocando rachaduras na autoridade do STF. Levará tempo reconstruí-la”, pontuou Vilhena à IPS. Um contragolpe do Senado foi aprovar uma lei proibindo salários que ultrapassem um limite fixado na Constituição, afetando principalmente o Poder Judiciário, cujos membros recebem elevadas remunerações.

Batalha entre manifestantes e polícia, no dia 13 deste mês, em Brasília, durante os protestos contra a emenda constitucional que impõe limite ao gasto orçamentário nos próximos 20 anos, medida que, para seus opositores, reduzirá os recursos para o setor social.

 

A cruzada contra a corrupção, encabeçada desde 2014 pelo juiz de primeira instância Sergio Moro e por um grupo de procuradores, já condenou com prisão e elevadas multas 118 pessoas acusadas dentro da Operação Lava Jato, do Ministério Público e da Polícia Federal. Com a colaboração dos dirigentes da Odebrecht, dobra a quantidade de réus que optaram pela delação premiada para conseguir reduzir suas penas.

Mais de 200 políticos estariam entre os supostos subornados pelo grupo empresarial, segundo vazamentos. No primeiro depoimento conhecido, Claudio Melo Filho, ex-diretor de Relações Institucionais da Odebrecht, denunciou que 48 políticos receberam dinheiro da construtora para favorecê-la em licitações e leis. Um terço dos acusados pertence ao Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), há 15 anos liderado pelo presidente Michel Temer, dois de seus ministros e outros parlamentares.

A sobrevivência de muitos políticos depende da lentidão do STF, que se agravaria diante da avalanche de casos para investigar e de julgamentos, pela insuficiência de provas, por irregularidades que anulem processos e possíveis iniciativas políticas como acordos de anistia, por exemplo, para quem usou dinheiro ilegal somente em campanhas eleitorais. Porém, há dirigentes que lutam para sobreviver a outros processos e à justiça ordinária.

Lula, por exemplo, enfrenta cinco processos por supostas compras de apartamentos e da sede para o Instituto Lula, com ajuda financeira de diferentes empresas. Temer, mencionado 43 vezes pelo primeiro colaborador da Odebrecht a depor, está protegido pela Constituição, que só permite o impeachment do Presidente da República por “crimes de responsabilidade” cometidos no exercício do mandato.

Mas sua eleição, em 2014, na chapa de Dilma Rousseff, pode ser anulada se o Tribunal Superior Eleitoral comprovar ilegalidades durante a campanha. Os diretores da Odebrecht já garantiram que a empresa entregou recursos ilegais para essa campanha. Além da frustração de expectativas econômicas, diminui o apoio ao presidente do setor empresarial e de legisladores, alimentando dúvidas sobre a permanência de Temer no poder até o último dia de 2018. Envolverde/IPS