Leia artigo da antropóloga e pesquisadora do Museu Goeldi sobre a criação da Secretaria Especial do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e possíveis sobreposições com as competências do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan)
Por Lucia Van Velthem*
A Medida Provisória nº 728, de 23 de maio de 2016, destinada à recriação do Ministério da Cultura instituiu uma sétima secretaria, a Secretaria Especial do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. As suas futuras atribuições constituem uma incógnita, uma vez que a Exposição de Motivos desta MP não expressa qualquer justificativa para a inovação, assim como não esboça os seus objetivos. Cogita-se que as atribuições da recém-criada secretaria possam se sobrepor às competências do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e, sobretudo, alijá-lo de decisões estratégicas para a proteção do patrimônio nacional.
O Iphan representa a mais longeva e bem sucedida política cultural do país. Sua atuação remonta ao Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, criado no início de 1937, após pelo menos duas décadas de debates, projetos e iniciativas. Compete ao Iphan a preservação do patrimônio cultural brasileiro. Entretanto, a valorização deste patrimônio exige sua inserção em políticas públicas mais amplas de desenvolvimento sustentável nos âmbitos econômico, ambiental e social para que a cultura possa estar na centralidade das propostas de crescimento do país.
O fortalecimento do Ministério da Cultura nas últimas décadas permitiu a realização de significativos avanços, relacionados com o campo do patrimônio cultural. Afastou-se assim de sua condição de aparato voltado para a preservação da memória de grupos hegemônicos e de referenciais europeus, para abraçar a representação de grupos sociais variados e de seus bens culturais, que guardam a diversidade da sociedade brasileira também em suas matrizes africanas, ameríndias e de imigrantes.
A atuação do Iphan é de fundamental importância para a cultura brasileira e a preservação da memória nacional, com unidades estabelecidas em todas as regiões do país. Esta instituição goza de grande credibilidade por estar profundamente comprometida com a salvaguarda do patrimônio nacional – material, imaterial e arqueológico. Possui uma experiência acumulada em um acervo de teorias, práticas e critérios de ação que alimentaram uma folha de serviços sem igual no país, com ressonância internacional. Realiza obras, licencia construções, restaurações e reformas em áreas tombadas, participa do licenciamento ambiental e promove ações e desenvolve diversificados programas de preservação e promoção cultural. Ademais, a independência do Iphan conduziu o instituto a ampliar o escopo do que se entende por patrimônio cultural com a incorporação do tema na Constituição de 1988, com a pioneira legislação acerca do patrimônio imaterial e, mais recentemente, com a chancela da paisagem cultural.
O desempenho do Iphan não constitui, de antemão, um empecilho à reabilitação urbana, tão necessária nos dias atuais. Contudo, pela sua trajetória, este instituto recusa processos de reabilitação higienizadores, pois não consideram a diversidade cultural das áreas em questão, e a necessidade de se considerar igualmente a questão da moradia, presente nesses locais. Observa-se, por outro lado, que a lógica das operações urbanas e de outros projetos de impacto, experimentados no Brasil hoje, tem sido a das grandes construtoras e empresas imobiliárias, lógica esta que a nova Secretaria Especial poderá vir a recepcionar.
Não se trata de uma simples conjetura, pois são especialmente preocupantes os projetos de lei que praticamente eliminam o licenciamento ambiental para empreendimentos considerados “especiais” ou “estratégicos”, tais como a PEC nº65 e o PLS nº 654/2015, de autoria do senador Romero Jucá, assim como as ações que possam flexibilizar o licenciamento. A esse respeito a Agenda Brasil, lançada pelo senador Renan Calheiros em 2015, menciona no sexto tópico ser necessário: “Revisar a legislação de licenciamento de investimentos na zona costeira, áreas naturais protegidas e cidades históricas como forma de incentivar novos investimentos produtivos” e no décimo tópico: “Simplificar o licenciamento para construção de equipamentos e infraestrutura turística em cidades históricas, orla marítima e unidades de conservação, melhorando a atração de investimentos”.
O possível alijamento do Iphan de significativas ações decisórias pela Secretaria Especial, pode repetir experiências malogradas do passado, quando a Secretaria de Patrimônio, Museus e Artes Plásticas, criada em 1999, passou a coexistir com o Iphan. O resultado foi uma série de conflitos institucionais, o esvaziamento e sucateamento do Iphan, que permaneceu apartado por longo período das ações de salvaguarda do patrimônio brasileiro.
A repetição, nos dias atuais, de uma situação similar à que ocorreu no passado, coloca em risco não apenas o patrimônio cultural do país, mas também o próprio Iphan, instituição histórica devotada ao setor, que vem percorrendo na última década um caminho de fortalecimento institucional e de crescente interlocução com a sociedade. A sua manutenção e fortalecimento são fundamentais para resguardar e ampliar as políticas de salvaguarda patrimoniais, assim como para a permanência de um debate amplo, democrático e plural de nossa cultura. (ISA/ #Envolverde)
* Publicado originalmente no site ISA.