por Marcio Astrini e Suely Araújo*, do Observatório do Clima –
Quem esperava que 2021 pudesse trazer uma mudança nas atitudes do governo brasileiro sobre a Amazônia certamente se frustrou com o artigo do general Hamilton Mourão em O Estado de S.Paulo, no último dia 27. A fim de justificar a política antiambiental de Jair Bolsonaro, que nos últimos dois anos colocou o Brasil em desgraça perante o mundo, o vice-presidente cometeu fraudes intelectuais. Em vez de ter a humildade de reconhecer erros e se propor a corrigir rumos, a missiva dobra a aposta na criação de uma realidade paralela, esperando quiçá que a repetição da mentira a torne verdade.
Mourão ataca as supostas “crenças ambientais plantadas na mente dos brasileiros”, comparando-as a “ervas daninhas” que sufocaram a pobre população da Amazônia, impedindo seu desenvolvimento e trazendo “danos incalculáveis”. Em dois parágrafos, o general faz com a história recente do Brasil o que o herói do Presidente, Brilhante Ustra, fazia com os cadáveres de suas vítimas: vilipendia e oculta.
Se tivesse a honestidade para olhar para o passado, Mourão saberia que o nascedouro dos níveis de miséria, violência e devastação vistos hoje na Amazônia foram os anos de políticas desastradas implementadas pela ditadura militar. Dos incentivos da Sudam à entrega de vastas terras públicas a multinacionais, passando pela Transamazônica, em 1972, e o desastre da ocupação de Rondônia, nos anos 1980, os planos de integração dos militares produziram inchaço populacional, corrupção e caos fundiário. Seu maior legado são as cinzas nas quais 20% da floresta amazônica (e não 16%, como o general afirma) foi transformada, principalmente a partir do governo Médici.
A ideologia que justificou o avanço da ditadura sobre a floresta é a mesma que Mourão ora busca resgatar com o Conselho da Amazônia. Trata-se de noções geopolíticas cozinhadas há décadas na Escola Superior de Guerra, que veem terras indígenas como cabeças-de-ponte de uma “internacionalização”, ONGs como “antagonistas” e a pata do boi como “progresso”. Tal paranoia já era lixo ultrapassado nos anos 1980. Não tem lugar no século 21.
Os governos civis, com maior ou menor ênfase, buscaram desde 1988 enfrentar a problemática herança deixada pelos militares na região. Tiveram maior sucesso entre 2004 e 2012, quando um conjunto inédito de políticas públicas permitiu expressiva redução do desmatamento. O que o general vice-presidente chama de “crenças equivocadas” cortou a devastação em 83% no mesmo período em que o Brasil cresceu em média 4,1% ao ano — a maior arrancada do PIB desde a redemocratização. O agronegócio na Amazônia também cresceu nesse período: como mostrou um importante estudo publicado na revista Science em 2014, a produção de soja quase duplicou e a de carne cresceu mais de 50% nesse mesmo período. Em tempos normais, ninguém deveria precisar lembrar ao vice-presidente da República sobre a história recente da Amazônia. Mas infelizmente, não vivemos tempos normais.
Mourão mente quando diz que a Amazônia “sofria com a ausência do Estado”: o Plano de Prevenção e Controle do Desmatamento, de 2004, que Bolsonaro enterrou assim que assumiu o governo, significou justamente a presença do Estado combatendo ilícitos. Ausência do Estado, essa sim, é vista desde 2019. De lá pra cá, saqueadores de florestas, madeireiros ilegais, grileiros de terras e invasores de áreas públicas vivem seus melhores momentos, sabedores que da esplanada dos ministérios partem as ordens para passar boi e boiada, diminuir a fiscalização e cortar as operações de campo.
Fiscais que ousam aplicar a lei ambiental são perseguidos e afastados de suas funções. Não à toa, em dois anos de governo Bolsonaro, o desmatamento subiu por duas vezes consecutivas, tal qual os incêndios florestais. Aumentaram também as invasões de terras indígenas e as emissões nacionais de gases que provocam as mudanças climáticas. Já o fundo Amazônia, que conta com quase R$ 3 bilhões de reais e deveria ser utilizado para o combate ao desmatamento, encontra-se convenientemente engavetado pela atual gestão. Os retrocessos são tantos e tamanhos que, em apenas 24 meses de mandato, o governo do qual Mourão faz parte conseguiu a façanha de ser reconhecido mundialmente como um exemplo de conduta antiambiental.
Mourão seleciona evidências quando recita números da fracassada Operação Verde Brasil 2. Pensada primeiramente para enfrentar as queimadas, a operação que já está em seu sétimo mês produziu a extraordinária cifra de 15% de aumento nos focos de calor em 2020 em relação aos índices escandalosos de 2019. Com cinco vezes mais efetivo e seis vezes mais orçamento que o Ibama, multou, nos primeiros seis meses, 18% menos que o Ibama sozinho no mesmo período do ano passado, e isso num momento em que o crime ambiental disparou. Pior ainda, eliminou a transparência dos dados de fiscalização, computando como seus resultados as ações de órgãos estaduais e das polícias.
Para complementar o quadro, os processos administrativos para julgamento dos novos autos de infração aplicados pelos órgãos federais se encontram paralisados desde outubro de 2019, eliminando-se o poder dissuasório das multas aplicadas por eles. O desmatamento durante a operação é o triplo da média dos cinco anos anteriores ao governo Bolsonaro para o período janeiro-novembro — só é menor do que o próprio recorde de Bolsonaro de 2019.
A verdadeira erva daninha a assolar a Amazônia e o Brasil é o governo de Jair Bolsonaro. Os únicos projetos do Presidente para a Amazônia são aqueles que ele já impõe ao resto do país: negação da ciência e do conhecimento, desmonte de políticas públicas, inação governamental e destruição.
*Marcio Astrini é secretário-executivo do Observatório do Clima
Suely Araújo é especialista-sênior em Políticas Públicas do Observatório do Clima. Foi presidente do Ibama (2016–2018)
Foto gal. Mourão: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil
Publicado originalmente no Medium