Diversos

‘Não prendam nossas carroças, aprendam a reciclar’

Por Ana Lúcia Maestrello* 

Para mim, ir à capital paulista sempre contribuiu muito para o refinamento do meu olhar. Lá, sempre tive um laboratório vivo de análise literária, em que posso coletar matéria-prima e primorosa para a confecção dos meus textos. Os prédios, o trânsito, o cheiro da cidade, a diversidade humana, as cores, o caos estimulam a criatividade e o constante exercício de empatia que busco praticar.

O meu foco, nesse dia, era uma reunião de negócios na Avenida Paulista. Minha veia empreendedora estava latente, já que eu precisava apresentar dois projetos socioambientais com primazia. Ao finalizá-la, perto da hora do almoço, eu precisava, nesse momento, suprir uma necessidade humana básica: alimentar-me.

Assim, eu e a equipe do IEMA fomos ao Mercadão Municipal de São Paulo. Almoçamos. Experimentamos frutas, conversamos sobre a reunião. Meu cérebro empreendedor fervilhava para desenhar um plano de negócios. Saímos de lá. Entramos no carro em direção à Avenida do Estado. Lógico que havia trânsito parado.

Estar parada em meio ao caos do trânsito, com a minha mente tão caótica quanto, direcionou meu olhar para ele: Rafael Bahia, homem lutador pela sua própria sobrevivência e pela sobrevivência do nosso planeta. Sim, ele era o verdadeiro empreendedor socioambiental: o catador de recicláveis.

carrocareciclagem

Tudo ficou suspenso, foquei naquela figura humana tão representativa para mim e depois na frase escrita em seu carrinho:Não prendam nossas carroças, aprendam a reciclar. Quem era aquele empreendedor tão próximo de mim que revelava sua angústia numa frase? Como assim, prender o instrumento de trabalho de um homem?

Eu precisava ouvi-lo, ele poderia orientar minha veia empreendedora de uma forma mais simples. Afinal, o Rafael também estava com problemas na gestão de negócios. Fiquei na esperança dele poder me ajudar, pois costumo complicar muito esse processo corporativo de planejamento. Sim, eu o enxerguei como consultor ideal para aquele momento. Precisava do seu conhecimento.

Na impulsividade, pedi para parar o carro. Precisava do Rafael. Procurei me aproximar com gentileza, pois vejo como a única forma de ser ouvida. E ele me olhou, enxergou-me e abriu seu sorriso para mim. Empreendedor reconhece empreendedor.

Ele pôde falar comigo. Senti-me acolhida por aquele homem. Que sabedoria humana admirável! Que luta sincera pelo meio ambiente! Que propósito de vida fenomenal! Minha admiração ficou transparente: registrar tamanho conhecimento era necessário.

Sim, eu o entrevistei. Pedi-lhe que explicasse aquela frase de impacto. E, a partir da pergunta, Rafael discorreu sobre o fato: a frase fora escrita por grafiteiros que procuram cuidar da equipe de catadores da região central da cidade, com a proposta de orientá-la com reformas desses carrinhos e posicioná-la socialmente por meio de frases e desenhos impressos nesses equipamentos de coleta.

Essa frase específica da carroça de Rafael teve relação com o movimento da Prefeitura de São Paulo de “limpar” a região central próxima à Cracolândia porque lá havia muitos carrinhos que eram utilizados como barraca. Meu novo amigo contou-me sobre a confusão: “tomaram tudo, generalizaram. Como puderam recolher as carroças que alimentam nossas famílias? Pessoas que vêm da periferia para trabalhar aqui. Passei uma noite correndo atrás deles para recuperar a minha. Falei com os guardas: os senhores não podem tirar o pão das famílias. Mas não fui ouvido. Me reuni com os grafiteiros para ir à secretaria. Suspenderam o rapa. Mas ainda têm muitos carrinhos presos ao lado do shopping D porque a prefeitura não devolveu. As frases são uma reivindicação, um manifesto para as carroças serem devolvidas.”

Ao agradecê-lo pela entrevista, fiquei emocionada, já que me agradeceu também: “eu que fico agradecido. A senhora me ouvir e publicar esse problema, pode ajudar. Precisamos mostrar à sociedade para ter o apoio dela. Fazer os empresários e o mundo enxergarem a importância do nosso trabalho para o meio ambiente, para as cidades. Eu dei uma palestra no TED, puxe na internet para a senhora ver. Tenho sido chamado para fazer mais palestras. Fui dar uma na escola Dante Alighieri aqui em São Paulo. O que quero é ser respeitado como trabalhador, quero parar de ser chamado de burro, comedor de lixo. Criei 10 filhos com a minha carroça, hoje cuido dos netos. Sou feliz, mas não quero ver companheiros maltratados. Quero ver os homens que trabalham com a reciclagem serem respeitados.”

Ana

Voltei para o carro com parte das respostas às minhas angústias empreendedoras respondidas. Mesmo diante do sofrimento, da falta de reconhecimento, das dificuldades, ser feliz com a escolha profissional é uma questão de posicionamento diante do seu próprio negócio: acreditar nele ou não. Rafael acredita e é feliz.

Embora eu não seja jornalista, trabalhar com um transformou-me em uma jornalista cidadã. Ainda mais um com veias ambientalista, empreendedora e social. Obrigada, Juan Piva e Rafael Bahia, por suas lutas que inspiram pessoas a construírem um mundo melhor. (#Envolverde)

* Ana Lúcia Maestrello é presidente da Oscip IEMA.