Opinião

O ativismo como testemunha

Por Nicole Figueiredo de Oliveira*

Como a luta contra as mudanças climáticas, os combustíveis fósseis e o fracking mudou a minha vida.

Sempre me coloquei como protagonista do futuro que desejava para minha vida e para as pessoas que me rodeiam. Desde muito cedo enfrentei pequenas e grandes batalhas para chegar mais perto da realidade que sonhava. Me acostumei a carregar várias bandeiras – da proteção animal, do feminismo, ambientalismo, justiça social e racial, da não violência – e assim segui.

Apesar de muitas, estas causas sempre se complementaram. E quando me engajei com a problemática das mudanças climáticas, tive a certeza de que tudo está interligado. Não se pode proteger os animais sem seus biomas, não há justiça social sem alimentos e não se tem vida sem água. A luta pela justiça climática é a luta pela vida. E não só no futuro, mas principalmente no presente, pela memória de todos aqueles que já lutaram (e morreram lutando) no passado.

Os impactos das alterações no clima não conhecem fronteiras. Como um efeito em cadeia, gases que causam o aquecimento globalemitidos pelo Brasil afetam não só os brasileiros, mas pessoas e ecossistemas nos quatro cantos do mundo, deixando habitantes de pequenos países insulares sem casa, um agricultor na África sem água para irrigar sua plantação de subsistência ou cidades inteiras alagadas depois de uma forte tempestade.

Em 2011, como coordenadora da campanha de Clima e Energia do Greenpeace Brasil, fui testemunhar a terrível seca que assolava o Rio Grande do Sul, que reduziu a produção de leite a quase 1/3. Visitei diversas cidades, incluindo Candiota, onde hoje estão instaladas usinas termelétricas que consomem muita água e emitem componentes no ar que tornam a chuva ácida, inviabilizando, portanto, a captação e uso, pelos moradores, da única água restante, a da chuva.

Foto: Luna Parracho/ Greenpeace
Foto: Luna Parracho/ Greenpeace

 

Nesta ocasião, um querido amigo e colega de trabalho resgatou uma vaca prenha, que foi ao rio beber água e, devido à estiagem que torna as margens pura lama, ficou atolada e já estava prestes a morrer. A vaca foi salva, assim como seu bezerro. Mas não é sempre que uma pessoa treinada e preparada está por perto. Situações como estas não saem nos jornais, não atraem a atenção das pessoas, mas, infelizmente, se repetem todos os anos.

Para mim o mais difícil foi ouvir histórias de pessoas que já não tinham água para se banhar, cozinhar ou beber. Triste também foi ouvir o prefeito do município dizer que já havia declarado estado de emergência três vezes nos últimos dois anos – duas por seca – e, no mesmo dia, assistir a centenas de caminhões-pipa com água potável entrarem na termelétrica para resfriar o reator.

Ainda em 2011, viajei ao Rio de Janeiro para testemunhar os impactos dos deslizamentos de terra ocorridos na região serrana, que desalojaram milhares de pessoas e mataram outras milhares. Acompanhei o esforço do exército e dos bombeiros brasileiros para cavar a lama em busca de corpos, e ouvi histórias de puro terror vividas pelos sobreviventes.

Foto: Yuan Zhengxiong/ Xinhua
Foto: Yuan Zhengxiong/ Xinhua

 

Para mim, testemunhar sem divulgar não faz sentido. Guardar a experiência e a sabedoria para si pode ser importante do ponto de vista da evolução pessoal, espiritual, intelectual, mas seguramente não provoca a mudança que eu quero para o mundo. Desde então eu decidi assumir uma postura mais ativista, dar um passo além do boicote ou mudança de atitudes pessoais e fazer um trabalho ativo para incidir na tomada de grandes decisões ena formulação de políticas públicas, influenciando os rumosdos investimentos do país. Virei campaigner.

Com a memória das catástrofes viva no meu coração, mantive minha mente focada nas estratégias e no objetivo que eu quero alcançar: conter as mudanças climáticas, revertendo o caminho quase sem volta ao qual estamos destinando nossa vida no planeta.

A partir da decisão, ofoco

Foi então que descobri que o Fracking– ou a técnica do faturamento hidráulico para extração de gás de xisto – havia chegado para a América Latina. Me aprofundando no assunto, me deparei com um cenário que trazia todos os meus temores à tona: trata-se de uma atividade que não só ameaça a produção de alimentos (orgânicos e não orgânicos), mas também coloca em risco milhões de animais, as águas de superfície e subterrâneas que abastecem toda a região, além de contribuir para as mudanças climáticas emitindo imensas quantidades de metano na atmosfera.

Para mim estava muito claro: A maior ameaça ao meio ambiente, à fauna, à economia e às pessoas estava bem à nossa frente.

Foto: Alexis Vichich
Foto: Alexis Vichich

Em 2013, quando a 350.org lançou a campanha anti-fracking na Argentina para apoiar a luta local, visitei algumas pessoas do movimento e fui ver os campos de exploração com meus próprios olhos. Não consegui acreditar ao ver mangueiras gigantes injetando milhões de litros de uma mistura altamente tóxica em poços colocados no meio das plantações de maçãs, ao lado das casas e escolas das comunidades.

Tive o prazer de conhecer pessoas extremante corajosas que diariamente enfrentam a máquina pública, que utiliza a estrutura da polícia local para proteger os poços de fracking dos próprios moradores da região. Na ocasião, a polícia queria nos levar presos apenas por termos tirado fotos das torres de fraturamento sem autorização da YPF, estatal argentina responsável pela atividade. Só nos salvamos porque o senhor que nos acompanhava havia jogado bola com o pai do policial, e o ambientalismo ficou um pouco menos criminoso naquele momento. Mesmo assim, saímos com a ameaça de que se fossemos avistados novamente circulando por ali, não haveria uma segunda chance.

Visitamos também a região de Vaca Muerta, um dos maiores depósitos de gás de xisto do mundo. O local já havia virado um queijo suíçodevido às centenas de perfurações, explosões e vazamentos decorrentes do fracking. Fomos acompanhados de alguns indígenas Mapuche que, até a chegada dessa atividade exploratória, faziam pastoreio com seus animais. Como pastomorto por contaminação, eles estavam sendo forçados a deixar seu modo de vida tradicional e hoje lutam para que suas terras não sejam totalmente invadidas, e para que os poucos animais que ainda nascem com apenas uma cabeça possam acessar o rio para beber água.

Ver aquelas torres, que pareciam saídas diretamente de um filme de ficção científica, fraturando e explodindo a terra ao lado das escolas, e contaminando as águas tão próximo das pessoas, me chocou profundamente. Foi nesta ocasião que conheci o Seu Antonio, que teve a vida transformada em um verdadeiro inferno quando uma torre de fraturamento foi instalada bem ao lado da sua casa. A propriedade do Seu Antonio tinha um viveiro com árvores, macieiras, galinhas e vários cachorros, mas o barulho perturbador daquelas máquinas transformou aquele lindo sítio em um terrível e interminável pesadelo.

Foto: Alexis Vichich
Foto: Alexis Vichich

De volta ao Brasil, no mesmo ano, a Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) trouxe este problema cada vez mais para perto, leiloando blocos para exploração de gás através do fracking em todo o país. Dessa forma, presenciávamos o próprio Estado, que em tese deveria cuidar dosrecursos naturais tão caros a todos os cidadãos brasileiros e de todo o mundo, colocando nossos principais aquíferos em risco, incluindo o Aquífero Guarani, Bauru, São Francisco e muitos outros.

Alguns dos blocos se localizam em cima de Unidades de Conservação e Terras Indígenas na Amazônia, muitas vezes abrangendo parte de aldeias e territórios dos últimos índios isolados remanescentes do planeta. Não pude acreditar que o Estado estava escancaradamentecolocando nosso maior patrimônio cultural e ambiental à venda.

Foi então que a 350.org se juntou à Coalizão Não Fracking Brasil pelo Clima, Água e Vida (COESUS) e apoiou a Campanha Não Fracking Brasil, que já era realizada desde 2013, ajudando a aprovar a lei municipal de proibição do fracking em mais de 60 municípios. O fundador da Coalizão, Juliano [Bueno de Araújo], me ensinou muito sobre como fazer campanhas estratégicas e como ganhar de verdade a luta. Neste momento, como ambientalista e ativista pelos direitos humanos e animais, tive a certeza de que seríamos vitoriosos e de que eu realmente estava no trilho certo do caminho que determinei para minha vida.

Foto: 350.org Brasil/COESUS
Foto: 350.org Brasil/COESUS

 

Em 2015, com o apoio de um cineasta e senador argentino e sua equipe, montamos uma comitiva de deputados estaduais, vereadores e prefeitos, e junto com a equipe de produção do programa Cidades e Soluções, da TV Globo, voltei para o norte da Patagônia Argentina. Porém, desta vez eu achei que fosse só ajudar aquelas pessoas a serem testemunhas da catástrofe, e que nada mais me chocaria tanto. Grande equívoco!

Ao conversar com membros de uma cooperativa local de produção de geleias, fui informada que Seu Antônio havia falecido de câncer naquele ano, que não havia mais mercado para exportação de todas aquelas maçãs, e que elas estavam apodrecendo nos pés. Soube ainda que as comunidades Mapuche estavam contaminadas, a maioria das mulheres com câncer, lutando por seu território, com uma viatura impedindo o acesso a seus animais.

Foto: Juliano Bueno de Araujo/COESUS
Foto: Juliano Bueno de Araujo/COESUS

Visitamos Dona Palmira, dona de uma plantação de maçãs há várias gerações, e que já não conseguia mais viver da atividade agrícola. O programa mostrou como o petróleo pingava do seu chuveiro, e sua filha nos contou como ela já não conseguia mais lavar roupas de tão preta e oleosa era sua água, contaminada por hidrocarbonetos.

Senti o sofrimento de Dona Palmira. Chocada com a falta de sensibilidade de um deputado que nos acompanhava e com a situação daquela doce senhora, saí de lá com lágrimas nos olhos e pesar no coração. Há dois meses recebi a notícia de que Dona Palmira faleceu de câncer, um ano depois do nosso encontro.

Foto: Juliano Bueno de Araujo/COESUS
Foto: Juliano Bueno de Araujo/COESUS

 

Apesar da tristeza, não devo esmorecer. Sinto o chamado da luta ainda mais forte dentro de mim. A relação que construí com essas pessoas e esses lugares é o que me faz continuar minha caminhada, certa de que a maior ameaça para o presente está batendo na nossa porta. Sigo, ainda como testemunha, com a determinação de lutar pela vida, que só é possível sem o fracking. (#Envolverde)

Nicole Figueiredo de Oliveira é diretora da 350.org no Brasil e América Latina. Consultora brasileira e especialista nas áreas de Mudanças Climáticas, Direito e Sustentabilidade Internacional, ela possui bacharelado em Direito pela Universidade Mackenzie, no Brasil, e dois mestrados em Direito Internacional e Resolução de Conflitos, um pela Universidade para a Paz das Nações Unidas na Costa Rica, e outro pela Universidade de Innsbruck, na Áustria. Nicole foi consultora de mudanças climáticas para diversas organizações não governamentais internacionais, como a Humane Society International, a maior organização de proteção dos animais no mundo, e o Greenpeace. Ela integra o Comitê da Bacia Hidrográfica do Iraí, o Fórum Paranaense de Mudanças Climáticas e várias outras comissões de proteção ao meio ambiente. Também é coordenadora nacional da Coalizão Não Fracking Brasil pelo Clima, Água e Vida.