Por Maria Helena Masquetti*
“Feliz o homem cujo poder vem de dentro do seu coração”. Este foi o título da última peça publicitária que criei, há quase 20 anos. Havia me empregado em uma agência pequena, que não tinha (ainda) contas de produtos infantis. A ideia era garantir algum ganho enquanto buscava, em outra formação, a transição para uma nova atividade na qual não teria mais que anunciar para crianças.
Fiquei feliz por ter criado aquele argumento que desatrelava a felicidade do poder material e feliz também ficou o dono da agência com o retorno que a mensagem de Natal conquistou, estreitando o relacionamento com os clientes. Não se sabe como, um exemplar foi parar na parede de uma loja grande de brinquedos nas imediações. Ao ver a aglomeração dos clientes em torno do pôster, cujo impacto visual fora garantido pelo rosto em close e granulado de um Cristo e por um texto lateral que, pelo visto, emocionava ao justificar o título, o dono da loja agiu rápido. Em lugar de ligar para a agência, conseguiu meu contato pessoal, surpreendendo-me com uma proposta para integrar sua equipe de publicidade.
Durante o secreto e lauto almoço, expliquei-lhe minhas razões, declinando do convite apesar de sua última cartada em melhorar ainda mais o salário que me pagaria. Estando ainda numa fase que eu chamaria de intermediária em minha conscientização sobre os males do consumismo na infância, contemplei o pôster vaidosamente exposto na recepção do escritório. Pensei no retorno positivo que a mensagem trouxera à imagem da agência junto aos clientes e, por que não, à minha. Pensei no movimento de vendas da loja de brinquedos e no convite para retornar a um salário quase igual o que tivera numa multinacional famosa, atribuindo todos aqueles ganhos, em tão curto espaço de tempo, a uma força realmente maior.
E foi olhando mais fixamente o pôster, num suspiro ingenuamente grato, que uma ficha mais pesada que a cruz caiu sobre minha cabeça: sim, eu havia vendido o Cristo por algumas moedas a mais no salário, pela garantia de clientes cativos, melhorando os negócios, e por já tê-lo terceirizado como promotor de vendas na loja de brinquedos. E foi naquele momento que a compreensão se fez definitivamente clara sobre o uso de nossas emoções para fins lucrativos, levando-me a reler, quase incrédula, um trecho do que eu mesma havia escrito no texto lateral do cartaz: “… É o poder de se fazer respeitar sem um centavo no bolso; é ser implacável com a hipocrisia…”
Gosto de pensar que outros publicitários possam estar se dando conta do quanto o marketing usa justamente aquilo que o dinheiro não compra para nos vender caro aquilo que temos de graça dentro do nosso coração, da nossa casa e no contato com aqueles a quem amamos. E gosto mais ainda de imaginar que eles estão se recusando a fazer isso com as crianças que, por acreditarem no que ouvem e veem, são fortemente tocadas pelas mensagens bonitas que visam prometer a elas um paraíso atrelado à compulsão por comprar.
Que neste Natal, o maior presente para as crianças seja a boa vontade do marketing em respeitar os direitos da infância, compreendendo que o reino encantado onde elas brincam e são verdadeiramente felizes não pertence a este mundo do ter. (#Envolverde)
* Maria Helena Masquetti é graduada em Psicologia e Comunicação Social, possui especialização em Psicoterapia Breve e realiza atendimento clínico em consultório desde 1993. Exerceu a função de redatora publicitária durante 12 anos e hoje é psicóloga do Instituto Alana.