Por Mario Osava, da IPS –
Rio de Janeiro, Brasil, 18/8/2016 – O Brasil ganhou, com Rafaela Silva, a primeira medalha nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro e uma nova heroína com múltiplas funções. A façanha de vencer adversárias favoritas no judô olímpico a tornou uma forte voz contra o racismo e a homofobia. Além de negra e pobre, assume sua homossexualidade. Sua primeira declaração como campeã olímpica, no dia 8 deste mês, foi uma descarga contra os que a chamaram de “macaca que deveria estar na jaula”, quando ela foi desclassificada por uma infração nos Jogos de Londres, em 2012.
A medalha é sua vingança contra o racismo.Também é um exemplo de triunfo sobre a pobreza e a criminalidade que arrasta muitos jovens no bairro Cidade de Deus, onde viveu e que serviu de tema e título de um filme sobre a violência do tráfico na zona oeste da cidade do Rio de Janeiro. Personagens desse tipo e esportistas imbatíveis, como o corredor jamaicano Usain Bolt ou o nadador norte-americano Michael Phelps, são fundamentais nos Jogos Olímpicos, que se converteram em um negócio midiático global, mais do que um grande encontro mundial de competições esportivas.
A superexposição também tem um papel vital no espetáculo audiovisual. Nos Jogos do Rio,que acontecem entre os dias 5 e 21 deste mês, as disciplinas esportivas aumentaram para 42, multiplicadas em 306 modalidades de competição entre 11.552 atletas, 8% a mais do que em Londres 2012. Porém, a quantidade de jornalistas aumentou muito mais, cerca de 20%. Foram credenciados mais de 25 mil para cobrir a Rio 2016. Isso se traduz no fato de haver 2,2 profissionais da imprensa, do rádio, da televisão e da internet, para cada atleta competindo durante os 19 dias dos Jogos.
A capacidade de conexões para transmissão internacional de dados nos primeiros Jogos Olímpicos na América do Sul quadruplicou em relação à de Londres há quatro anos. São os Jogos “mais conectados” da história, destaca sua publicidade. A desproporção em matéria de audiência é mais chamativa ainda. As entradas vendidas ao público somam seis milhões, segundo os organizadores, enquanto os espectadores que seguem as competições pela televisão ou por internet são contados em milhares de milhões em todo o mundo.
Só a cerimônia de abertura atraiu três bilhões de espectadores, estimaram especialistas. O espetáculo de muitas cores e muitos efeitos especiais, dirigido por premiados cineastas, acabou com as dúvidas sobre o êxito dos Jogos Rio 2016, até então ameaçados por atraso em obras, epidemia do vírus da zika e pela crise política e econômica do Brasil.
O olhar captado por dezenas de câmeras de televisão não substitui o ambiente do estádio, mas permite observar detalhes de vários ângulos, inclusive o aéreo, nem sempre possíveis para os espectadores diretos. Os avanços tecnológicos aperfeiçoam dia a dia a experiência do desfrute à distância. A estética é outra dimensão da competição. Cumpriu seu papel na abertura dos Jogos e foi uma presença forte em algumas disciplinas, como a ginástica em suas variadas modalidades e os saltos ornamentais, o que suaviza a origem bélica de muitos esportes olímpicos, como luta ou tiro.
Mas a dramaturgia que envolve as contendas talvez seja o elemento central do espetáculo midiático das Olimpíadas. É notório que mais gente se lembre do esforço da corredora suíça Grabrielle Andersen para concluir a corrida em 37º lugar, cambaleando nos 200 metros finais, do que da vencedora da maratona nos Jogos de Los Angeles, em 1984.
Para a honra de acender a tocha olímpica foi escolhido o corredor Vanderlei de Lima que, em Atenas 2004, liderava a maratona com vantagem de centenas de metros quando um ex-padre católico irlandês o agarrou e jogoucontra os espectadores, tirando o atletada corrida. Ajudado por um grego, Lima conseguiu reiniciar a prova, mas perdeu tempo, ritmo e a medalha de ouro que parecia segura. Pelo espírito esportivo com que aceitou o bronze, o Comitê Olímpico Internacional (COI) lhe concedeu a Medalha Pierre de Coubertin, que leva o nome do criador dos Jogos modernos. O incidente, filmado e exibido à exaustão em todo o mundo, converteu Lima em um dos ícones olímpicos.
O espetáculo necessita de heróis. Os nacionais são abundantes, às vezes basta uma medalha para que apareçam. Nesta Olimpíada sobram exemplos. A judoca Majlinda Kelmendi seguramente contribuirá muito para a consolidação de Kosovo como país independente há apenas oito anos, ao conquistar a primeira medalha de ouro para sua pátria. Em 2012, ela competiu sob a bandeira da Albânia.
Fiji ganhou também sua primeira medalha, de ouro, no torneio de rúgbi de sete, modalidade esportiva agora incorporada aos Jogos, depois que sua versão de 15 jogadores esteve incluída de 1900 a 1924. Porto Rico, um Estado associado dos Estados Unidos, com representação própria nas Olimpíadas, também obteve no Rio seu primeiro ouro, no tênis, com Monica Puig.
O COI reconhece 208 comitês nacionais, superando os 193 membros da Organização das Nações Unidas (ONU). Alguns participantes olímpicos não são Estados independentes, como Porto Rico, Hong Kong, Ilhas Virgens ou Samoa Americana.
Fatos dramáticos como o de Vanderlei de Lima também constroem heróis olímpicos que ajudam o espetáculo. Etenesh Diro, da Etiópia, acabou a prova dos três mil metros com barreira sob aplausos, mesmo chegando em 21º lugar. Outras duas competidoras caíram e no incidente tiraram sua sapatilha direita. Diro não conseguiu repor e seguiu descalça até a meta. As autoridades do atletismo reconheceram seu direito de disputar a final, na qual ficou em 15º lugar.
Os heróis são comumente individuais. Talvez por isso, os Jogos Olímpicos não ficaram ofuscados pelo futebol, um temor que estaria por trás de algumas restrições à participação desse esporte de popularidade monopolizadora, como o limite de idade de 23 anos para os jogadores que disputam o torneio, com três exceções.
De todo modo, a audiência olímpica está assegurada pela diversidade de esportes, culturas e dramas pessoais ou nacionais. Um excesso de matéria-prima parao jornalismo, o espetáculo televisivo e o digital, cujo gigantismo parece ilimitado e que tornará muito difícil que outro país do Sul em desenvolvimento seja sede dos Jogos em um futuro próximo.
Nessa decisão, além de razões ligadas às necessidades e pressões do que é antes de tudo um grande espetáculo mundial, também influiriam os problemas ocorridos nos Jogos do Rio, como obras atrasadas, violência urbana, poluição das águas, pouca presença nos estádios e vaias – distantes do espírito olímpico – para alguns atletas estrangeiros. Envolverde/IPS