por Samyra Crespo – As viagens: pisar em todos os quadrantes da Terra –
Dizem que nossa consciência é fruto dos livros que lemos, das viagens que fazemos e dos relacionamentos que cultivamos durante a vida.
E a experiência de viajar por este mundo natural e social tão diverso, intrigante e algumas vezes assustador, é uma das alegrias que tenho podido realizar. Das viagens tem resultado um aprendizado de valor incalculável.
Desejei fazê-lo desde cedo. Um dia, aos 11 anos, lendo sobre a “aurora boreal” numa revista Seleções (Readers Digest) desejei ardentemente conhecer a Antártida. O fiz aos aos 50 e poucos anos. Com isto, completei o sonho de ir a todos os Continentes e de conhecer os principais habitats da Terra: desde as areias escaldantes do deserto à floresta tropical mais imponente do mundo – a Amazônia. Do shangrilá asiático, o Buthão, aos bigger five mammals da África.
E finalmente a Antártida, com seus montes e picos eternamente (assim pensávamos!) gelados e seus pingüins divertidos. Ir à Antártica é uma experiência única que recomendo a todos que a tenham – se puderem – antes de deixar este mundo. Suas convicções sobre conservar o que ainda resta do mundo natural sairão fortalecidas.
A primeira oportunidade de viajar por diversos lugares, me foi dada pelo trabalho de assessoria que fiz à ala progressista da igreja católica nos anos 80′, e foi pelo Brasil. Dormi em muita cama dura de convento, tomei caipirinhas aguadas (teor alcoólico sempre controlado), participei de centenas de missas comunitárias, singelas e calorosas, em várias regiões do meu país. Conheci padres proféticos, freiras abnegadas e e esforço tremendo de tornar cada “Campanha Nacional da Fraternidade” um périplo religioso de solidariedade para com os problemas reais do País e de seu povo. Muitas dessas campanhas ocorreram em prol da Amazônia, das questões fundiárias e em defesa das minorias. Por ser religiosa também visitei vários santuários por conta própria e fui à Jerusalém – onde munida de um guia em francês que comprei no aeroporto me aventurei pelas mesmas ruas e sendas em que Jesus teria percorrido até o Calvário. Eu e uma amiga holandesa, ateia até os ossos, mas que entendia a minha disposição e manteve uma atitude respeitosa.
A segunda oportunidade de viajar, desta feita para fora do Brasil, me foi dada pela ciência, pela carreira que escolhi. Dei aulas de História manejando um carrossel de slides sobre as pirâmides do Egito, as ruínas gregas e incaicas. Lugares só imaginados por fotografias, filmes. Ver de perto o que você amou por anos e só adivinhou a beleza ou importância, é uma emoção indescritível. Você se belisca para acreditar que está ali, ao lado da Esfinge, e tira fotos para a família. Afinal… ser turista é aceitar sê-lo: muitas vezes um enganado feliz.
A ciência foi desde sempre global e uma das primeiras a consagrar o networking, a colaboração entre diferentes culturas. Por isso, uma boa parte das viagens que fiz devo aos congressos, reuniões científicas onde tive oportunidade não só de visitar maravilhosos campi universitários, mas também de dar aulas. A melhor experiência foi morar seis meses em Nova Iorque e dar aulas no Instituto de Estudos Brasileiros e Latinoamericanos, na Columbia University: sobre meio ambiente no Brasil. Ter cumprido todos os passos de uma carreira acadêmica me levaram a conhecer mentes brilhantes, intelectuais e cientistas que dedicaram a vida tentando compreender o mundo e traduzi-lo para seus alunos. Participar de eventos em universidades seculares e algumas com alguns milênios nas costas – te leva a ver uma dimensão menos volátil da cultura.
Finalmente, a partir de meados dos anos 90′ – encontrei a terceira porta, ou portal, para ter as experiências mais fantásticas da minha maturidade: olhar o mundo com o olhar de uma ambientalista. Mudou tudo na minha percepção. Abandonei os museus e os hotéis da margem esquerda do Sena e mergulhei na experiência de conhecer áreas agrestes, natureza quase intocada, habitats não degradados pela cultura industrial.
Compramos, meu companheiro e eu, um barco a vela, de madeira, com um nome auspicioso – Dharma. Não escolhemos o nome, veio como um presente. Nele navegamos por mais de dois anos, explorando o litoral brasileiro e presenciando ocorrências encantadoras, mágicas – só conhecidas por marinheiros, como uma vez em que acordei à noite, na Baía de Paraty, perto de uma reserva indígena, cercada de luz na água normalmente escura do mar: era um fenômeno natural onde o plâncton emite luz. De repente você está num mar de luz. Tirei a roupa e mergulhei naquela gloriosa água, certa de que estava vivendo um dos melhores momentos de contato com a natureza.
Estar num barco por horas, às vezes por dias a fio, dominando a ciência dos ventos e aprendendo o silêncio, é algo que muda a sua sensibilidade.
O ambientalismo traz no seu DNA o amor à natureza e o desejo de cultivar uma consciência planetária. Quando praticado de verdade, o melhor conselheiro é abandonar a vidinha de gabinete e tomar banho de cachoeira, e para isto não precisa nem sair da cidade. Ouvir as flores se abrindo na floresta da Tijuca, reconhecer pássaros, árvores e guinchos de diferentes macacos, pode ser no Jardim Botânico, no Parque do Ibirapuera. A gente vê muita degradação também e sofre com ela. Mas desse lado escuro da vida não falarei hoje.
Quando você é ambientalista, sabe, no seu íntimo que é preciso educar-se na gramática da Natureza: virar botânico amador, zoólogo de primeira viagem, antropólogo com seu caderninho de campo, anotando tudo – você se percebe ignorante e é dominado pelo desejo de aprender.
Assim termino este meu relato: uma vez, na PUC de São Paulo, perguntaram a Paulo Freire – recém retornado do exílio – se ele era cristão. Com mais de 70 anos, ele respondeu: “Meu filho, estou aprendendo a ser”.
Uma lição preciosa que sigo desde então. Ser ambientalista é um aprendizado sem final. É como abrir portas, descortinar paisagens, combater por boas causas e seguir sempre em viagem pela aventura humana.
Acho que esta é a minha última utopia. Pelo menos nesta ‘encadernação ‘.
… continua no próximo Post.
Samyra Crespo é cientista social, ambientalista e pesquisadora sênior do Museu de Astronomia e Ciências Afins e coordenou durante 20 anos o estudo “O que os Brasileiros pensam do Meio Ambiente”. Foi vice-presidente do Conselho do Greenpeace de 2006-2008.
Este texto faz parte da série que estou escrevendo sobre os anos da minha formação e de como me tornei ambientalista nos anos 90.
(#Envolverde)