1o de julho de 2020 deve ser uma data de extrema importância para o Brasil em termos de biodiversidade, povos tradicionais e indígenas e para o direito internacional. Infelizmente, a conjuntura política e o cenário de pandemia estão ofuscando uma votação no Congresso Nacional que definirá nossa relação internacional, tanto comercial quanto científica e diplomática, no tocante ao acesso ao patrimônio genético e repartição de benefício (ABS, da sigla em inglês para Access and Benefit-sharing).
Às 13h55 desta quarta-feira, está previsto para ser, novamente, submetido à consideração do Congresso Nacional o ” Protocolo de Nagoya, sobre Acesso a Recursos Genéticos e Repartição Justa e Equitativa dos Benefícios Derivados de sua Utilização à Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB) “. O referido texto, que foi concluído durante a 10a Reunião da COP (Conferência das Partes na Convenção de Biodiversidade, realizada em Nagoya, Japão, em outubro de 2010), foi assinado pelo Brasil no dia 2 de fevereiro de 2011, porém requer ratificação do Congresso.
Em junho 2012, a então presidenta, Dilma Rousseff, enviou recomendação ao Congresso com orientação à aprovação – prevendo que a próxima COP de biodiversidade ocorreria naquele mesmo ano, em Hyderabad (Índia) e o país detentor da maior diversidade biológica do mundo era, e espera-se que continue sendo, referência mundial no tocante às ações e incitavas para salvaguarda de seu patrimônio genético e repartição justa com os detentores de conhecimento tradicional. Infelizmente, a decisão para ratificação vem se arrastando desde então.
A não ratificação, inclusive, fez com que o Brasil não participasse das decisões sobre o Protocolo durante a 14ª Convenção da Diversidade Biológica (COP 14), que ocorreu em Sharm El Sheik, no Egito, em novembro de 2018. Em março de 2019, o Brasil perdeu mais uma chance de ratificar o protocolo, quando o congresso, novamente, suspendeu a votação.
Mas, o que essa ratificação de fato representa para o Brasil? O Protocolo reforça a soberania dos países para regulamentar o acesso a seus recursos genéticos e também garante que as legislações nacionais sobre acesso à biodiversidade sejam respeitadas. Temas como biotecnologia e direitos de repartição com povos tradicionais e indígenas também são tratados nesse âmbito. O Protocolo busca proteger, também, países contra a biopirataria. A ratificação não só contribui para a salvaguarda de nosso patrimônio e proteção aos direitos de repartição em se tratando de relações internacionais, mas garante a presença do Brasil em importantes negociações internacionais, como a ocorrida na COP-14 em que o Brasil “ficou de fora”.
As decisões tomadas no âmbito da COP definem como países deverão se relacionar – entre si – em se tratando de acesso e repartição de benefícios entre usuário (quem acessou) e os detentores do patrimônio genético (país de origem) e, quando houver, dos detentores do conhecimento tradicional associado a esse recurso (povos tradicionais e indígenas). Enquanto um país não ratifica o Protocolo, perde a oportunidade de participar das negociações desse instrumento e fica submetido às suas regras ao negociar com países signatários. Se queremos opinar, devemos ser parte.
Vale lembrar do caso em que uma empresa japonesa, K.K. Eyela Corporation, patenteou o açaí, espécie natural do bioma amazônico. Entre 2003 e 2007 arrastou-se uma apelação brasileira para retirada da patente. Mas, o uso indevido do açaí não foi exclusividade do Japão; empresas alemãs, inglesas e norte-americanas também se aventuraram pela biopirataria desse patrimônio amazônico. O cupuaçu passou por situação semelhante.
Um exemplo emblemático de acesso ao patrimônio genético brasileiro é o lendário perfume Chanel no 5, lançado em 1921, que tinha como um dos ingredientes o óleo essencial extraído da madeira do pau-rosa. Apesar de haver variedades de pau-rosa, o óleo essencial é produzido apenas da espécie nativa da Amazônia. Em 1997, uma ONG francesa chegou a preparar um boicote contra o perfume Chanel nº 5 por conta de risco de extinção dessa espécie.
Apesar de o linalol, principal substância aromática do pau-rosa, já ser produzido sinteticamente, até hoje o pau-rosa é extraído da floresta para a produção de óleo essencial e configura na lista de espécie ameaçadas – na categoria em perigo de extinção. E, apesar da Chanel afirmar que não utiliza o óleo essencial do pau-rosa há algumas décadas, o fato é que a origem do perfume continha pau-rosa e isso se configura em acesso ao patrimônio genético – lá na década de 20.
Outro exemplo de suma importância refere-se à uma pesquisa científica que levou à fabricação de um dos medicamentos mais vendidos no mundo. Em 1963, o saudoso Prof. PHD Sérgio Henrique Ferreira publicou um estudo sobre uma substância que ele batizou como Fator Potencializador da Bradicinina, BPF (bradykinin potentiating factor), capaz de controlar a pressão arterial . O mais interessante, a substância deriva do veneno da jararaca – sim, a cobra (Bothrops jararaca). Infelizmente, por perseguição durante a ditadura militar, o professor foi obrigado a se exilar na Inglaterra e continuou seu trabalho científico além mar. A pesquisa científica, diversas vezes premiada, levou ao desenvolvimento de um famoso medicamento, o captopril. Encurtando a história, hoje, a Bristol-Myers Squibb é detentora da patente e desde 1977 e produz uma versão sintética da substância.
Apesar das duas espécies serem brasileiras, e o uso do pau-rosa estar associado a conhecimento tradicional, o acesso ao recurso genético foi feito muito antes da existência da lei, do Protocolo, ou até mesmo da existência dos termos biodiversidade ou sustentabilidade, e o lucro com a venda do perfume e do medicamento em questão não revertem benefícios para o Brasil em termos do acesso ao patrimônio genético e nem contribui para projetos de conservação das espécies e muito menos para a população tradicional, que muito antes da década de 20 já utilizava o pau-rosa para fins de perfumaria natural.
Seria ótimo ver Chanel no 5 e Captopril revertendo parte de seus lucros para a conservação e beneficiando populações tradicionais, não? Desde 2001 esse cenário não é mais uma história frequente (ver nota).
Os setores de beleza e fármacos estão entre os diretamente envolvidos no tocante à lei brasileira e ao protocolo, mas não só medicamentos, cosméticos e perfumes fazem uso do patrimônio genético e devem repartir benefícios. Biotecnologia vem sendo exaustivamente discutida no âmbito das COPs de biodiversidade e outros temas como alimentos, incluindo, funcionais merecem atenção.
Em paralelo, temos a necessidade de uma ação governamental para compartilhar com a sociedade civil sobre a importância do Protocolo de Nagoya, da Lei da Biodiversidade brasileira e, principalmente, da manutenção da floresta em pé, dos diversos biomas e ecossistemas naturais e consequentemente, da proteção da biodiversidade, que movimentou, por exemplo, quase R$ 3 bilhões apenas com o mercado de açaí no Estado do Pará no ano de 2018.
Esperamos pela boa-vontade do Congresso em ter devidamente analisado o texto e os pareceres, que circulam desde 2010, e finalmente aprovar a ratificação. Detentores de conhecimento tradicional e a soberania sobre a proteção da biodiversidade brasileira, nosso maior patrimônio, agradecem.
Nota: O Brasil, diferente de inúmeros países, possui legislação que trata do assunto desde 2001, quando foi sancionada a Medida Provisória 2186-16/2001, acerca do acesso e remessa do patrimônio genético e acesso ao conhecimento tradicional associado para as finalidades de Pesquisa Científica, Bioprospecção e Desenvolvimento Tecnológico; além de prever a criação do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN). A MP foi substituída, em 2015, pela lei 13.123/2015, conhecida como Lei da Biodiversidade.
Frineia Rezende é especialista em Business & Biodiversity, bióloga e mestre em ecologia e recursos naturais.