Opinião

Quando a sabotagem vem de dentro: por que a justiça brasileira se recusa a permitir a ressocialização?

por Patrícia Villela Marino*  – 

Quando falamos sobre o sistema prisional e ressocialização, países localizados ao Norte da Europa são os primeiros a serem citados como grandes exemplos de “escape” da lógica punitivista: complexos bem equipados, estruturas arejadas e planejadas, quartos individuais, acesso à cultura, grades inexistentes e… poucos prisioneiros.

Ainda que o tratamento concedido à população carcerária seja motivo de polêmica entre os conservadores, a queda na criminalidade desses países fala por si só: o número de detentos na Holanda, por exemplo, despencou em 27 pontos percentuais entre 2011 e 2015 – 43 quando considerados os últimos dez anos. A reincidência dos egressos holandeses também está entre as mais baixas do continente: 10% (dados do relatório World Prison Brief). A Suécia é outro grande exemplo quando o assunto é cárcere: apenas 4,5 mil suecos ocupavam o sistema prisional do país em 2014.

É impossível ignorar que países como a Suécia e a Holanda possuem realidades completamente opostas às do Brasil – afinal, nenhum deles atravessou processos de colonização exploratórios e violentos, ou possui uma história étnico-racial tão complexa, ou uma democracia tão jovem e frágil, ou mesmo uma extensão territorial continental como é o nosso caso.

Entretanto, ainda que pese a crítica acerca dos contrastes históricos, geográficos e socioeconômicos, meu contra-argumento para o estudo desses respectivos dados e a possibilidade de utilizá-los como inspiração é que estas sociedades vivenciaram (de maneira direta ou indireta) contextos catastróficos capazes de tê-las tornado mais punitivas e odiosas – a exemplo da Segunda Guerra Mundial, responsável por uma destruição de valor humano, econômico, social e cultural que poderia ter se alastrado até os dias de hoje.

Estas sociedades – outrora massacradas pelas atrocidades que chocam o mundo até os dias atuais – nos ensinam que a obviedade do caminho a ser tomado na reciprocidade nem sempre (ou quase nunca) deve ser a opção exercida. A propagação de justificativas que normalizam o ódio e perpetuam a punição sem oxigenação de idéias e renovação de práticas não produzem a paz necessária para que a justa medida da Justiça, aquela que segue produzindo paz, seja implantada.

Assim sendo, abstendo-nos da crítica imediata e regenerando nossa mente e intelecto edificador, convido-o para seguir nesta leitura. De pronto, há de se notar que o Brasil segue na contramão das tendências europeias: após alcançar o terceiro lugar em números absolutos da população carcerária, mais de 800 mil brasileiros estão cumprindo pena em regimes fechado ou semiaberto – e quase metade deles (42%) ainda não foram julgados (Banco de Monitoramento das Prisões, do Conselho Nacional de Justiça – CNJ).

Esses números, por si, já deveriam ter peso suficiente para nossas autoridades se comprometerem com as políticas públicas de desencarceramento e ressocialização – o que não parece ser o caso. Enquanto os países que estão acima do Brasil no ranking – a China (1,6 milhão) e os EUA (2,1 milhões) – começam a direcionar seu olhar para a redução de suas populações carcerárias, o Brasil mantém um crescimento anual de 8,3% nos povos “por trás das grades”.

A raiz desse problema, especialmente no Brasil, é complexa e multifatorial, contemplando desde fatores regionais até questões étnico-raciais intrínsecas ao aparato político-burocrático de nosso país. Especialistas argumentam, contudo, que tais fatores fazem parte de um plano maior, encabeçado pelo Estado, que coloca o encarceramento como solução de problemáticas socioeconômicas anteriores à própria existência da República.

Ao adotar o encarceramento e políticas punitivistas adjacentes para “remediar” as mazelas sociais que assolam o país, o Estado admite que grupos marginalizados permaneçam desta forma, despindo-lhes de todas as garantias concedidas pela Constituição – principalmente o direito fundamental à cidadania ativa.

E, como se o aprisionamento em massa de nossas minorias sociais não fosse grave o suficiente, os egressos do sistema também sofrem uma retaliação estatal velada: os impedimentos para sua ressocialização plena. Um dos maiores exemplos dessa “sabotagem” é a pena de dias-multa, vulgarmente conhecida como “pena de multa”.

Ela consiste em uma espécie de sanção penal de caráter patrimonial e foi instaurada para obrigar o egresso a pagar um valor em dinheiro aos Fundos Penitenciários Nacional ou Estadual – responsáveis por custear os Sistemas Prisionais de suas respectivas esferas. No ano passado, o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) alterou o entendimento sobre a lei que regulamenta a pena de dias-multa – endossando um retrocesso ainda maior sobre a ressocialização de pessoas saídas do sistema.

Grosso modo, no entendimento atual a extinção da punição imposta pelo Judiciário só é possível após a quitação integral da multa – fazendo com que os egressos devedores convivam com a condenação, sem acesso a documentos e à cidadania básica. A nova regra vale para todos os processos.

Essa alteração é mais um exemplo da seletividade penal a serviço da manutenção de poder. O sistema, além de escolher quem e como punir, define também as condições de liberdade do egresso, mesmo após o término do confinamento. Além de minar por completo a possibilidade de reinserção do indivíduo na sociedade, o entendimento do STJ aumenta a chance de reincidência – tomando do egresso a possibilidade de trabalhar com carteira assinada, o próprio Estado obriga o indivíduo a voltar para os braços do crime.

A decisão representa mais um dos inúmeros retrocessos pelos quais o judiciário brasileiro tem passado nos últimos anos. Além de distanciar cada vez mais a população carcerária e egressos do sistema de uma ressocialização plena, eficaz e longeva, a pena de dias-multa também é um mecanismo de manutenção do encarceramento em massa, o maior dos atributos de controle populacional de um Estado elitista, supremacista e sem qualquer consciência cívico-social.

É tempo de avançarmos no debate do encarceramento em massa, abrindo mão das raízes retrógradas sobre as quais nosso aparato político-burocrático foi fundado. É preciso nadarmos contra a corrente que trancafia a população mais vulnerável em vez de conceder a ela condições para participar ativamente da sociedade e contribuir para a construção de um Brasil coletivo.

*Patrícia Villela Marino, advogada e ativista cívico-social. Co fundou e lidera o Instituto Humanitas 360, trabalho pelo qual foi reconhecida com o Prêmio Humanitário 2020, concedido pelo The Trust for the Americas, afiliada da Organização dos Estados Americanos (OEA). Pertence ao Conselho Consultivo do Centro Ruth Cardoso e integrou o conselho fundador dos Global Shapers do Fórum Econômico Mundial. Liderou a criação da Plataforma Latino Americana de Políticas de Drogas (PLPD).

 

(#Envolverde)