por Gilberto Natalini*, José Carlos Carvalho**, Marcus Eduardo de Oliveira *** –
A foto “Pálido Ponto Azul” foi feita há 30 anos pela sonda Voyager 1, a uma distância de cerca de 6 bilhões de quilômetros da Terra. Ela mostra nosso planeta como um ponto azul brilhante na vastidão do espaço, “preso” dentro de um raio de luz solar.
À luz do paradigma da modernidade ocidental, frente à facilidade com que são ultrapassados os limites da sustentabilidade, de uma verdade não podemos escapar: nunca estivemos tão perto do colapso socioambiental, um problema de primeira ordem que, cada um sabe, continua avançando. Para começo de conversa, isso implica dizer sobretudo que, entre o que a Terra nos oferece e o que consumimos (Pegada Ecológica da humanidade), geramos, com certa propriedade, um saldo ecológico negativo. Para piorar a situação, agora o consenso científico confirma a principal questão desse século: o aquecimento global, ou o aumento anormal da temperatura média no planeta.
De toda sorte, sejamos francos logo de saída: determinada pela ação antrópica, ao observar-se esses dois últimos séculos de intenso saque ecológico, não soa despropositado dizer que nosso antropocentrismo dominador produziu, até aqui, a mais danosa lista de riscos ecológicos conhecidos: extinção em massa de espécies, erosão de biodiversidade, fragmentação de habitats (especialmente em zonas tropicais), poluição químico-industrial1, aniquilação biológica, destruição da camada de ozônio, emissões de carbono, atmosfera poluída, ciclo de chuvas irregulares, crescimento do consumo e da descartabilidade, planeta plastificado.2
Em outros termos, o agir humano sem compromisso ambiental, herança da modernidade, ensina-nos que em toda a nossa história nunca havíamos provocado significativas alterações do ecossistema; tampouco havíamos agredido a natureza com agrotóxicos e com uma agricultura industrial poluidora. Sequer havíamos abalado os alicerces de todo o sistema vida. Nem mesmo chegamos perto de destruir tantos espaços vitais da natureza, a ponto de transformar boa parte da estrutura geológica (a face) da Terra, como estamos fazendo atualmente. Agora mesmo, enquanto um terço das terras aráveis do mundo estão improdutivas, foi constatado que três quartos do ambiente terrestre e 66% do ambiente marinho sofreram severas modificações, consolidando assim o que começamos a anunciar logo acima, o enorme déficit ecológico global.
Triste constatação, serve de exemplo: (i) mais de 80 mil quilômetros quadrados de floresta desapareceram de nosso campo de visão nos últimos tempos – na verdade, em apenas 50 anos, da metade do século passado até o ano 2000, foram destruídas mais florestas do que em toda a história de evolução da humanidade; (ii) de 1980 para cá, metade da vida selvagem morreu3 – aliás, sobre isso, ninguém duvida que estamos liquidando com a biodiversidade planetária, produto de mais de 3,5 bilhões de anos de evolução; (iii) nossos mares continuam sobreexplorados pela sobrepesca, comprometendo 55% dos recifes do mundo; (iv) os mananciais da Terra (superficiais e subterrâneas), num nível cada vez mais degradado, secam em velocidade assustadora; (v) desde os anos 1960, o número de áreas marinhas pobres em oxigênio, segundo o Programa da ONU para o Meio Ambiente, vem dobrando a cada década;4 (vi), por fim, nos últimos 11 mil anos, segundo os especialistas, foi reduzida em 50% a biomassa da vegetação terrestre.
Ainda que de forma superficial, o que foi até aqui colocado se encaixa numa formulação direta: em geral, estamos produzindo riscos e ameaças cada vez mais insustentáveis que abalam a saúde e a segurança humanas.
Esses riscos, cabe breve esclarecimento, não são de agora, vem de longe. Desde 1970 para cá – os cientistas confirmam – dobramos nossa pegada ecológica. Fazendo um rápido recorte, isso quer dizer que a quantidade de natureza que a humanidade faz uso para manter seu insustentável estilo de vida, já excede em 50% a capacidade de regeneração e absorção do planeta. As emissões de gases de efeito estufa, referenciado problema estrutural, saíram de 1,28 ppm (partes por milhão), em 1970, para 2,4 ppm, na última década. Informação relevante do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), aponta que desde a metade do século passado os eventos extremos (fenômenos climáticos e/ou meteorológicos fora dos níveis considerados normais) aumentaram de frequência na maioria das áreas terrestres conhecidas do planeta. A poluição do ar (quinto fator principal de risco de morte no mundo), sempre um problema global que tantas doenças lega à humanidade, responde atualmente por 16% das mortes no mundo todo.
E tem mais: desse momento atual até por volta de 2050, falando ainda de outra grave poluição, se não mudarmos nosso desastroso estilo de vida consumista, muito provavelmente haverá mais lixo plástico do que peixes em nossos oceanos, ameaçando severamente o equilíbrio trófico.
Moral da história, o que temos feito até aqui, em detrimento da biodiversidade, deixa evidente o que temos de pior: a falta de responsabilidade socioambiental, referência característica, por assim dizer, de nosso antropocentrismo dominador, força aliada de primeira hora da economia de quantidade, ideologia do crescimento, para ser preciso.
À primeira vista, observando a narrativa convencional, isso parece comprovar que não há limites de nenhum tipo, especialmente diante do capitalismo contemporâneo. Limites, sendo rigoroso na análise, soa em tom de heresia para os que direcionam os destinos do mundo moderno. Tanto que o recado do mainstream, nesse sentido, é bastante claro: obstaculizar o avanço da economia global, ou o incentivo ao crescimento ininterrupto, é ir contra à ideia consagrada de modernidade. Modernidade (?).
Seja como for, adaptada às sociedades industrializadas que guardam estreita referência de que o mundo moderno pode ser mais bem abastecido materialmente falando, a comunidade humana, aglomerado humano que em breve contará quase 9,5 bilhões de indivíduos, não cessa de idealizar a prosperidade e os avanços sociais como possibilidades de melhorar o padrão de vida atual. E mesmo sob o âmbito de ecossistemas finitos, o que significa ignorar as restrições ecológicas, ressoa forte a ideia-síntese de que sempre será preciso associar conforto e qualidade de vida à mais consumo material.
Pela ideia dominante, expandir o mercado de consumo se configura, ademais, na condição dada para qualificar (?) o padrão social. Em última análise, isso faz parte da influente narrativa de prosperidade, tão comum no seio da vida ocidental.
De modo direto, fica o alerta: diante do impasse atual, isto é, a par da crise ecológica em avançado estágio, tornou-se habitual medir sucesso e desenvolvimento (ou qualquer coisa equivalente a isso) pelos indicadores econômicos. Pelo sim, pelo não, isso quer dizer sobretudo que, se o PIB está crescendo, a vida social, por esse ângulo, vai bem.
Na linguagem mercadológica, importa precisar, o crescimento infinito (como se isso fosse, de facto, possível) se candidata ao objetivo maior do projeto civilizatório. Na realidade, desde há muito, soa como música aos ouvidos do capitalismo de compadrio (clientelista). E que fique claro: isso fere de morte o princípio de sobriedade. Não é que o crescimento econômico, vale aqui a ressalva, seja de todo ruim. Ninguém discute sua importância à macroeconomia convencional. O problema central, contudo, sempre é lícito esclarecer, é quando o crescimento (tornar a economia maior) ultrapassa (excede) os limites planetários. Logo, pelo olhar econômico, o quadro está justaposto: a preocupação primeira dos agentes econômicos não reside em qualificar (desenvolver) a economia, mas sim em quantificar (fazer crescer). Crescimento não tem nada a ver com desenvolvimento.
No detalhe: credora do vigente modelo que vive e sobrevive de aumentar quantidades e que, por isso mesmo, destrói o mundo verde, boa parte da humanidade, com dificuldade de aliviar a pegada ecológica, segue ignorando que a expansão do comércio global é fruto da mais expansiva invasão e exploração do mundo natural. Daí, alheia à preocupação ecológica, segue aumentando sua fé no crescimento crescente. Nesta altura, em uma primeira aproximação, supor isso significa ter a certeza de que a sociedade humana, por variadas razões, igualmente ignora que “a crise econômica e a crise ecológica”, como diz com sobras de razão Michael Löwy, professor emérito da École des Hautes Études en Sciences Sociales (Paris), “resultam do mesmo fenômeno: um sistema que transforma tudo – a terra, a água, o ar que respiramos, os seres humanos – em mercadoria, e que não conhece outro critério que não seja a expansão dos negócios e a acumulação de lucros”.5
Desdobramentos possíveis, sobram consequências: “no Antropoceno”, escreve John Bellamy Foster, “o capitalismo está criando fissuras antropogênicas nas espécies, nos ecossistemas e na atmosfera, gerando uma crise socioecológica”. Na sociedade capitalista, para além das falsas polêmicas, não paira dúvida de que, se mantido o ritmo atual, mais dificuldades serão criadas para o que mais importa alcançar, a sustentabilidade ambiental. Sustentabilidade, desafio que permanece em construção, é, antes de tudo, valor relacionado ao princípio da resiliência e a resposta mais curta à crise da modernidade.
Numa avaliação preliminar, talvez pela instabilidade ambiental que continuadamente produz e reproduz rupturas que abalam as condições de sustentabilidade na Terra, os desafios ecológicos essenciais colocados à humanidade consistem basicamente em dois flancos diretos: primeiro, cuidar do único habitat de que dispomos (procurando mitigar as mudanças climáticas e o colapso da biodiversidade) e; segundo, evitar o avanço da destruição dos meios de vida, cada vez mais tangíveis.
Todavia, em tudo isso há aí um problema-base a ser resolvido: para responder a construção de nossa vida social, nossa espécie não hesita em enfatizar o desempenho da economia de produção, e se afasta assim da busca da sustentabilidade. Ao desorganizar-se os sistemas ecológicos globais, mais “a estupidez social e ambiental que provocamos”, parafraseando o ambientalista uruguaio Eduardo Gudynas, “condena toda a vida”.
Traço principal, é preciso dizer algo mais: seduzidos pela lógica da economia (mais negócios, mais especulações, mais quantidades) enxergamos a economia produtiva (digno de nota: a atividade humana já explora num ritmo insustentável mais de 100 bilhões de toneladas de materiais) como a solução do mundo. Resultado? Dado um conjunto de decisões econômicas, colocamos na rota do perigo o futuro do planeta, das espécies e, claro, da própria sustentabilidade. Em larga medida, esquecidos de que o planeta é finito, a crise da modernidade (fratura socioambiental talvez seja o termo mais apropriado), cada vez mais intensificada, exige de todos nós profunda reflexão acerca de nossas relações com a ideia de futuro que projetamos, com a Natureza (matriz de tudo, eixo da vida) e com as formas de vida que nela se encontram.
E como boa parte das ações antrópicas têm crescido além de nossa capacidade de sustentação, acelerando assim a degradação do planeta, ao menos uma certeza tem sido bem acolhida: é tempo de reagir, começando por mudar radicalmente a economia real, isto é, o modelo (predatório) que aí está e sua gestão (sem responsabilidade socioambiental, para falar o óbvio) capitalista do planeta.
Dito em breves linhas: a partir de outra postura política, construir um novo e promissor modelo de desenvolvimento – longe da lógica dominante do eterno crescimento – pensando numa sociedade sustentável com base biológica estabilizada, se converte, a rigor, no grande desafio desses tempos atuais. É isso o que nos espera.
(*) Gilberto Natalini é médico cirurgião, vereador por cinco mandatos na Câmara Municipal de São Paulo. Foi Secretário Municipal do Verde e do Meio Ambiente (2017) e candidato a governador do Estado de São Paulo, pelo Partido Verde (2014).
(**) José Carlos Carvalho é engenheiro florestal, graduado pela UFRRJ. Doutor Honoris Causa, pela Universidade Federal de Lavras. Foi Secretário Executivo do MMA e Ministro de Estado do Meio Ambiente do Brasil no segundo governo de Fernando Henrique Cardoso. Foi um dos fundadores do IBAMA , no qual exerceu os cargos de diretor e presidente, além de Secretário de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável de Minas Gerais.
(***) Marcus Eduardo de Oliveira é economista e ativista ambiental. Mestre em Integração da América Latina pela Universidade de São Paulo – USP (2005). Autor de Economia Destrutiva (CRV, 2017) e Civilização em Desajuste com os Limites Planetários (CRV, 2018), entre outros.
(Envolverde)
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Notas:
- Vale notar: especialmente a produção de produtos químicos, seguindo de perto à análise do Centro de Resiliência de Estocolmo, aumentou 50 vezes, desde a metade exata do século passado.
- Desde meados do século passado, estima-se que tenha sido produzido 8,9 bilhões de toneladas de plástico em todo o mundo, sendo que dois terços desse total, 6,3 bilhões de toneladas, viraram lixo.
- No detalhe: não se trata apenas dos animais não domesticados, mas também das plantas e de outros organismos que crescem e vivem em ambientes dito selvagens.
- Os especialistas falam em, pelo menos, 700 áreas em todo o mundo em que o oxigênio está em níveis declaradamente perigosos.
5. Ver “Crise ecologica, crise capitalista, crise de civilização: a alternativa ecossocialista”. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/ccrh/a/dZvstrPz9ncnrSQtYdsHb7D/?lang=pt>