Por Ana Carolina Amaral*
Na boca do povo, da novela da Globo e até do governo federal, o Velho Chico está pop, mas está morrendo.
Íntimo dos nordestinos e vital para o Nordeste, o São Francisco ganha popularidade com a novela Velho Chico e volta à agenda do governo federal, que se prepara para anunciar, em agosto, esforços para completar as obras de transposição e revitalização do rio. Agora sob responsabilidade da pasta de Integração Nacional, e não mais de Meio Ambiente, o Conselho Gestor de Revitalização do Rio São Francisco deve ser reativado, ficar mais próximo da Presidência e incluir uma cadeira para o comitê da bacia do rio – pleito que o grupo reivindicava há uma década. Embora a agenda seja popular, ainda não se sabe qual o orçamento disponível para investir na recuperação do Velho Chico.
Contaminado por coliformes fecais e ameaçado pelos extremos climáticos, de 2012 para cá o rio enfrenta a seca mais prolongada da História. Nada indica que ela irá arrefecer em 2016, já com consequências certas para os próximos dois anos. E embora a quantidade de água diminua, a demanda cresceu 87% na última década. Hoje, segundo o pesquisador José Almir Cirilo, da Universidade Federal de Pernambuco, o rio já não dá conta: são exigidos cerca de 309,4 metros cúbicos por segundo (m³/s), enquanto a vazão média fica em 272 m³/s em Sobradinho (outubro/2014).
A vocação do Velho Chico para o abastecimento de água no Nordeste ainda fica comprometida pelos projetos de hidrelétricas e pela obra de transposição das suas águas. Já escassas no curso natural, elas minguam para quem as recebia e não atendem à expectativa de quem passaria a receber. “A condição para desviar água de Sobradinho, por exemplo, é que o reservatório esteja com 94% da sua capacidade. Quando teremos essa condição na conjuntura do Século XXI? Hoje ele está com 27% do volume útil. Estamos lidando com a expectativa das comunidades que esperam receber essa água da transposição”, critica o presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco, Anivaldo Miranda. Mas ele já fala da transposição como águas passadas. O que o preocupa agora é a contrapartida, prometida ainda no governo Lula, de que “a cada centavo para a transposição, seria investido um centavo para a revitalização do rio”.
Não faltam demandas para revitalizar o Velho Chico: “precisamos investir em recarga de aquífero e mata ciliar; em saneamento básico. Precisamos combater o assoreamento e o mau uso dos solos. Precisamos transformar em patrimônio nacional os biomas Caatinga e Cerrado, que são hoje os mais ameaçados”, dispara Anivaldo, atentando para o perigo de se desviar, além do curso do rio, o curso da sua revitalização. “Não vale criar escola com esse dinheiro e dizer que foi parte da revitalização”, pontua Anivaldo. Já o secretário do comitê de bacia, Maciel Oliveira, vai além e denuncia que “até construção de estádio foi carimbada como verba de revitalização [do rio São Francisco].”
O significado de revitalizar, para os membros do comitê, não se dá a ambiguidades: trata-se de recuperar a capacidade hidroambiental do Velho Chico. Isso é, o aumento da qualidade e da quantidade de água. De olho em cada centavo prometido na obra de transposição, ele lembra que “não estamos falando só dos R$ 2 bilhões usados para a construção dos canais norte (Ceará) e leste (Paraíba), mas também de obras complementares que compõem o mesmo pacote e, ainda que fiquem a cargo dos governos estaduais, elevam a conta da transposição para R$16 bilhões”. Segundo a Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e Parnaíba (Codevasf), de 2004 para cá já foram investidos mais de R$ 2,7 bilhões na recuperação de áreas degradadas da bacia.
Sociedade limitada
A fórmula do comitê gestor de bacias hidrográficas é inspirada no modelo francês de gestão dos recursos hídricos e se instalou no Brasil junto à Constituição, em 1988. Nele, uma representação de todos os setores da sociedade e dos usuários da água daquela bacia se reúne com o poder de deliberar sobre os recursos hídricos da região: isso significa desde colaborar para e aprovar o Plano de Recursos Hídricos da Bacia até decidir qual será o valor cobrado pelo uso da água. É daí que vem, inclusive, os recursos que sustentam o comitê gestor e permitem a participação ativa e independente da sociedade civil.
Com essa arrecadação, o comitê gestor do São Francisco já concluiu 25 planos municipais de saneamento básico e hoje opera em 40 outros municípios. A estimativa do grupo é que menos de 30% dos 507 municípios dessa bacia hidrográfica tratam seus esgotos hoje e pelo menos 100 deles lançam seus dejetos diretamente na calha do Velho Chico. O comitê é o principal patrocinador de planos de saneamento básico em toda a região.
Diverso e democrático, o modelo de comitê gestor empodera a participação social e tem em si tudo para ser expandido para a administração de outros recursos naturais – com configurações para sustentar uma transição consistente no desenvolvimento sustentável local. No entanto, o contexto não tem feito justiça ao conceito. No caso do Velho Chico, o fato do comitê ter uma composição mista que inclui a representação do governo não bastou para conseguir diálogo e agenda, na última década, com os órgãos que administram os recursos hídricos na esfera federal – responsável pela gestão do rio que corta seis estados do país.
Contaminação e escassez hídrica ilustram o custo de uma conta difícil de pagar. O desafio é aproveitar o momento pop, do horário nobre da TV e de um governo interino que busca aderência com a população nordestina, para conseguir compromissos de longo prazo com a sobrevivência do rio. O Nordeste que se dividiu sobre a transposição pode se unir pela revitalização do Velho Chico. (#Envolverde)
* Ana Carolina Amaral é jornalista, mestra em Ciências Holísticas pelo Schumacher College e secretária-executiva da Rede Brasileira de Jornalismo Ambiental.