Sociedade

PCD: chame-nos pelo nosso nome. Questão de autoafirmação e cidadania

Por Meirivone Aragão, Carta Capital – 

Fundamentais para construção de uma sociedade com as possibilidades que a diversidade agrega, pessoas com deficiência afirmam sua identidade

No ano de 2020, praticando o isolamento social em razão da pandemia da Covid-19, vejo a importância do engajamento social e da expressão das identidades que compõem o mosaico da nossa existência. Embora a (d)eficiência seja assunto bem resolvido na intimidade, carece de cuidado relacional. Afirmar-me como Pessoa Com Deficiência é uma descoberta política, que define escolhas e ações como cidadã do meu país, envolvendo também as relações com a própria sociedade.

Aceita o desafio de aprender sobre o assunto? Sente algum incômodo pela falta de informações? O desconhecimento é a maior barreira a ser enfrentada e a denominação já é um bom começo.

A inspiração veio de uma conversa virtual com as meninas do Cabaré Feminista. Elas se definem como “um manifesto artístico feito por mulheres e para mulheres, com canções e poesias que trazem a reflexão e o debate sobre a luta por igualdade”, e me deixaram matutando sobre a dor e a delícia de se expressar quem se é.

Como nos chamar é uma questão que vem evoluindo na legislação e na sociedade.

“Aleijados”, pessoas incapacitadas, inválidas e excepcionais ou simplesmente deficientes são termos que refletem o pensamento depreciativo e segregacionista que precisa ser eliminado. A mudança é um processo educacional que demanda vontade, sendo que a discussão racial e das questões de gênero tem sido uma excelente escola de aprendizado sobre a importância da linguagem adequada.

A legislação avançou para a expressão “Pessoa Portadora de Deficiência”, que também foi abolida por desconsiderar que a deficiência não é intrínseca ao ser, mas o resultado das barreiras do ambiente físico e social, que, quando eliminadas, apagam a letra “d” e nos transformam em igualmente eficientes. A deficiência, portanto, está na sociedade que não desenvolve os meios necessários para extinguir esses obstáculos e não na diversidade física dos indivíduos.

Por sua vez, a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, incorporada ao direito interno brasileiro com status de norma constitucional em 2009, alterou a denominação para Pessoa Com Deficiência – PCD. Depois dela, veio a Lei nº 13.146/2015, conhecida como Estatuto da Pessoa com Deficiência, marco para a consolidação do princípio da igualdade assegurado na Constituição Federal como valor supremo de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos.

Na expressão “Pessoa Com Deficiência”, a menção à pessoa é necessária pelo fato de que, em muitos momentos da história, não fomos considerados como tal, tendo a sociedade flertado com a eugenia – sem acento – teoria que busca melhorar a raça humana seja pela eliminação dos indivíduos diferentes do padrão escolhido, seja pela interferência genética, antes do nascimento.

Antepassados desta geração, alguns ainda vivos, testemunharam nosso trajeto para os fornos da “solução final’’ adotada pelo Nazismo, na busca da melhoria da raça, por ocasião da Segunda Guerra Mundial. Com indignação, constata-se que esse movimento não morreu e possui um crescente número de adeptos, inclusive no Brasil, em que o atual presidente não esconde a admiração pelo seu maior representante. Nenhum dos dois nomes será citado aqui, em respeito à minha e à dignidade das pessoas com deficiência ao longo da história.

Foi difícil aceitar o voto de pessoas próximas, que não avaliaram a questão quando da nefasta escolha. Para evitarmos a cumplicidade em crimes históricos e a marcha para a morte de quem se reconhece na beleza da diversidade é urgente e necessário o diálogo.

Outro aspecto da eugenia é o planejamento familiar de pessoas brancas abastadas, com vistas à seleção genética da sua prole. Mais perto de nós, está o exemplo de quando a diferença é detectada no primeiro exame de ultrassom em gestantes. E aqui não estou discutindo a questão do aborto, que defendo como direito da mulher, mas da opção de uma sociedade pelo descarte de indivíduos em razão da diversidade da forma, ao invés de se debruçar com seriedade sobre a inclusão. Há exemplos ainda mais próximos, como o da eleição de um paciente para disputar respiradores ou um leito de UTI, na pandemia. Quem a sociedade marca para morrer?

Infelizmente, há escolhas adotadas por quem habita o planeta Terra no ano de 2020, que fragilizam ou impedem o direito à vida de quem nasceu com um corpo diferente do normal determinado como padrão aceitável. E olhe que, se observarmos de perto, como diz Caetano, mas bem de pertinho mesmo, ninguém é normal.

Superada a barreira do nascimento, não existem dúvidas de que a realidade continua sendo cruel e distante da proposta constitucional. Pelo censo de 2010, somos cerca de 6,7% da população, sendo que estudantes com deficiência representam somente 0,46% dos matriculados em instituições de Ensino Superior no Estado de São Paulo.

Por outro lado, pesquisas apontam que a inserção no mercado de trabalho brasileiro deixa muito a desejar e sequer as controversas cotas previstas na Lei nº 8.213/1991, de 2% a 5%, são efetivamente cumpridas, uma vez que a presença da pessoa com deficiência no trabalho formal gira em torno de apenas 1%. Dados preocupantes, mostrando que o caminho da inclusão ainda é bastante longo e exige engajamento de toda a sociedade.

A afirmação das Pessoas Com Deficiência gera visibilidade, marco importante na construção de uma sociedade eficiente e preparada para lidar com as possibilidades que a diversidade agrega, no florescimento para um mundo mais justo, inclusivo e repleto de gente disposta a abraçar a própria humanidade. Chame-nos pelo nosso nome.

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