Por Fernanda Macedo, da Página 22 –
O setor é capaz de gerar retorno econômico para empresas públicas e privadas – desde que bem geridas. Mas o maior dos ganhos é a qualidade de vida para a população.
O mercado do saneamento básico é do tamanho do mundo: 7 bilhões de clientes. Mas, mesmo com tanto potencial, a meta da universalização deste serviço segue a passos lentos. São ainda 2,4 bilhões de pessoas no planeta vivendo sem saneamento adequado, ou seja, a que apenas 68% da população mundial tem acesso. Os privilegiados se encontram sobretudo nas cidades, onde 82% da população urbana possuem saneamento contra apenas 51% da população rural. A situação piora ao olhamos para o Brasil. Menos da metade (48,6%) da população tem acesso à coleta de esgoto, o que significa mais de 100 milhões de brasileiros sem o serviço (saiba mais na reportagem de capa).
Avançar nesta agenda é um desafio. Com um modelo de negócios intensivo em capital e com altos custos operacionais, o setor de saneamento precisa de investimentos vultosos e um sistema de cobranças capaz de lidar com a sua magnitude, sem prejudicar o direito básico de acesso a esse serviço.
Mesmo com tantos desafios, investir em saneamento básico é parte fundamental de uma estratégia de desenvolvimento para o País. Segundo especialistas ouvidos nesta reportagem, o setor é capaz de gerar retorno econômico para empresas públicas e privadas quando bem geridas e planejadas e, sobretudo, bom nível de qualidade de vida e cidadania para a população.
Modelos de negócio
Para que um cidadão receba água tratada em casa e possa despejar seu esgoto corretamente, uma ampla rede de abastecimento e coleta precisa ser instalada. Os prestadores de serviços de saneamento, ou seja, aqueles que vão administrar e operar sistemas de abastecimento de água e de esgotamento sanitário, são públicos ou privados. O município ainda pode optar pela autarquia, ou seja, criar um órgão próprio para a gestão desse serviço em sua cidade. O principal estímulo para esse modelo é a redução da carga tributária atribuída a ele.
Mas a maioria dos municípios (75%) delega os serviços de água e esgoto às companhias estaduais. São os chamados contratos de concessões. Sob forte estímulo do governo federal na década de 1970, as companhias estaduais tornaram-se o principal modelo de negócios do setor, após a percepção de que os municípios não eram operacionalmente capazes de atender à demanda de saneamento do País. O Sistema Nacional de Saneamento, composto pelo Plano Nacional de Saneamento (Planasa), o Banco Nacional da Habitação (BNH) e o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), ofereceram incentivos à transferência da prestação dos serviços para companhias estaduais de saneamento básico, financiadas em grande parte pela União.
Somente após um longo jejum de investimentos públicos na década de 1980 – devido à crise econômica à época e à extinção do BNH –, o setor privado começou a entrar em cena. Nos anos 1990, algumas cidades do interior de São Paulo, como Birigui, Limeira, Jaú e Ribeirão Preto, fecharam os primeiros contratos de Parcerias Público-Privadas (PPP).
Segundo Rogério Pilotto, executivo sênior de Investimentos em Saneamento da International Finance Corporation (IFC), braço financeiro do Banco Mundial, “durante os últimos anos, houve ampla disponibilidade de recursos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) [para saneamento], que parece não ter sido aproveitada ao máximo, em muitos casos pela falta de projetos”. Ele acredita que há uma grande dificuldade do setor público municipal e de algumas empresas estaduais menos estruturadas em preparar e implementar propostas de projetos de saneamento. Com a atual escassez de recursos públicos, atrair o setor privado por meio de PPP pode ser uma saída, em sua opinião.
Mas, como o saneamento é tipicamente um serviço público no Brasil, a entrada do setor privado no negócio pode gerar algumas contestações. Como lidar com o risco de desvio da função principal do setor? E se, em vez de garantir o serviço para a população, a empresa privilegiar a geração de lucro aos acionistas? Para encarar o período de baixa de investimentos da década de 1980, muitas companhias estaduais optaram por abrir capital nas bolsas de valores, passando a incluir também outros acionistas além do governo em seus processos de tomada de decisão.
Giuliana Talamini, coordenadora técnica do Sindicato Nacional das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto (Sindcon), crê que a participação do setor privado não deve ser encarada como um risco à população, pois o modelo de concessão exige a criação de um plano rigoroso de viabilidade econômica e financeira, que é formalizado por meio de um contrato. “Considerando os enormes déficits do setor e o avanço lento para sua superação no cenário atual, acredito que apenas um ambiente de cooperação possa trazer respostas. Isso quer dizer que as soluções devem ser compostas por diferentes modelos, envolvendo o público e o privado”, comenta.
Além de uma possível maior participação do setor privado no mercado do saneamento, há outras oportunidades econômicas a serem exploradas, como as citadas por José Eli da Veiga, professor sênior do Instituto de Energia e Ambiente da USP, em artigo publicado no jornal Valor Econômico. Ele observa uma tendência mundial em projetar estações de tratamento de esgotos atreladas a novas funções, como a obtenção de fertilizantes, a geração de bioenergias e reúso da água tratada.
No Brasil, há algumas estações que já trabalham com essas possibilidades, como a Estação de Tratamento de Esgoto Jesus Neto, gerida pela Sabesp, que fornece água de reúso para a indústria.
Apesar de essa prática já estar consolidada em muitos países, é ainda algo incipiente no Brasil. Para Alcir Vilela, pesquisador do Centro Universitário Senac, professor convidado da Fundação Getulio Vargas e da FIA-USP, o principal desafio para a modernização das estações de tratamento não é o caráter tecnológico em si, mas a viabilidade econômica desses projetos. No estágio atual, essas tecnologias ainda exigem alto investimento e enfrentam burocracias, como a inclusão da energia gerada na rede nacional.
Rogério Pilotto, da IFC, considera essas soluções interessantes, mas não crê que devam ser prioridade de investimento dos prestadores de serviço. “O mais importante, no momento, é assegurar que mais áreas do Brasil tenham acesso ao saneamento básico.”
Responsabilidade compartilhada
O município e o estado não são os únicos responsáveis pelo saneamento no Brasil. A Constituição estabelece que a promoção de programas de melhoria das condições de saneamento básico é de responsabilidade compartilhada entre a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios. Isso significa que as três esferas de governo precisam realizar ações conjuntas para que os serviços cheguem a toda a população.
As prefeituras são responsáveis pela elaboração do Plano Municipal de Saneamento Básico e pelo engajamento da comunidade nas discussões. Esse plano é essencial para a regulamentação dos serviços e obtenção de empréstimos com o governo federal e instituições financeiras para novas obras ou melhorias. O município é também o titular desse serviço e cabe a ele decidir que modelo de negócios prefere adotar (autarquia, concessão a companhias estaduais ou Parcerias Público-Privadas).
Já o papel do governo federal é de instituir políticas nacionais e garantir a maior parte dos investimentos, por meio de recursos do Orçamento Geral da União, do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) e do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT). Alguns ministérios estão diretamente envolvidos na agenda de saneamento, como o Ministério das Cidades e o da Saúde para municípios acima ou abaixo de 50 mil habitantes, respectivamente. Outras iniciativas, como o programa para instalação de cisternas no Semiárido, é coordenado pelo Ministério do Desenvolvimento Social.
Além dessas esferas governamentais, a responsabilidade desse serviço abarca os órgãos e as entidades reguladoras, que acompanham e cobram dos prestadores de serviço o cumprimento das metas estabelecidas. Atualmente, de acordo com Lei Nacional do Saneamento, de 2007, os municípios são obrigados a criar uma agência reguladora para supervisionar o prestador de serviços, ou optar pelas agências estaduais já existentes.
Essa regra resultou em uma proliferação de agências regulatórias no País, o que representa um entrave ao avanço do serviço e tem afastado a iniciativa privada do setor. “O que mais atrapalha [o modelo de negócios do saneamento no Brasil] é um marco regulatório que só favorece bons negócios para empresas estatais ou mistas que aproveitam as vantagens de escala oferecidas por grandes aglomerações urbanas ou por alguns raros consórcios municipais”, afirma Eli da Veiga. “Esse marco produz a pior das injustiças sociais do Brasil de hoje que é ter metade da população sem acesso ao esgotamento sanitário. É preciso substituí-lo por outro que atraia investimentos privados, especialmente os de empresas estrangeiras capazes de generalizar o atendimento bem antes do fim deste século”, defende.
Como mostra reportagem publicada no Valor Econômico, tem-se discutido a possibilidade de a Agência Nacional de Águas (ANA) exercer poder regulatório sobre o setor de saneamento básico e atuar com estados e municípios para incentivar também a participação de empresas privadas.
Como garantir a qualidade do serviço
As agências reguladoras do setor de saneamento dependem de uma importante ferramenta para cobrar e assegurar a qualidade do serviço: o contrato firmado entre o prestador e o município. É por meio desse contrato que são acompanhadas e cobradas as metas combinadas anteriormente.
Em seu Manual do Saneamento Básico, o Instituto Trata Brasil afirma que os contratos de concessão entre as empresas estaduais e os municípios costumam ser muito vagos. Não há normas sobre tarifas ou sobre as obrigações da empresa. Na prática, o serviço é prestado como se fosse de competência estadual, inexistindo qualquer regulação municipal. A entrada de empresas privadas no setor tem sido uma provocação positiva nesse sentido, pois trouxe uma maior transparência e participação da comunidade nos processos de elaboração dos contratos, afirma Talamini, do Sindcon.
Como a maioria das atuais concessões foi celebrada com vigência de 30 a 40 anos, algumas já expiraram ou estão próximas de terminar. Com isso, algumas cidades têm optado por prestadores de serviços privados, na esperança de oferecer serviços de melhor qualidade com tarifas menores. Espera-se que a participação das PPP no mercado de saneamento possa aumentar e também melhorar a qualidade na elaboração dos contratos de empresas públicas ou mistas.
Experiências no exterior mostram como podem ser frutíferas as parcerias entre o setor público, o privado e as organizações sem fins lucrativos. A Toilet Board Coalition é uma plataforma de negócios criada em 2014 que busca justamente a colaboração entre esses atores, com o objetivo comum de acelerar os negócios de saneamento em larga escala.
Para que servem as tarifas
A principal forma de financiamento do setor de saneamento é a sua política tarifária, desde que seja capaz de suportar os custos de investimento e operação deste modelo de negócios.
Por isso, o valor referente ao tratamento do esgoto é cobrado já na fatura de água das residências e indústrias. Com base no consumo de água do cliente, é possível estimar o volume de esgoto que deverá ser tratado.
Praticamente em todo o mundo – exceto em casos pontuais, como no Japão – a medição individualizada do esgoto para residências não existe. Não pelo aspecto tecnológico, mas pelos fatores financeiro e operacional. “Seriam necessárias intervenções em todas as residências para instalar medidores, um investimento que não se justificaria. O modelo atual é prático e estabelece uma relação coerente entre consumo de água e produção potencial de esgoto, e tem base legal”, diz Vilela.
No entanto, esse o modelo de cobrança do tratamento do esgoto já embutido na conta de água provoca algumas distorções. Em uma carta ao presidente da Sabesp assinada por diversas organizações, entre as quais o Greenpeace, são cobradas medidas em relação a algumas injustiças geradas nessa cobrança. Por exemplo, em São Paulo a tarifa é cobrada de pessoas que não têm serviço adequado de esgoto mas pagam por ele, enquanto empresas que buscam fontes independentes de água deixam de pagar pelo tratamento de seu efluente.
Na opinião de Vilela é preciso aperfeiçoar a parametrização das tarifas em razão dessas distorções. “Se o objetivo é a universalização do saneamento, com água e esgoto tratados – se este é um direito do cidadão e, mais do que isto, se esta é uma condição para o desenvolvimento sustentável –, é esta a premissa que deveria nortear a remuneração dos prestadores de serviço, afirma o professor. No entanto, ele adverte que é necessário produzir algum estímulo para que o esgoto seja tratado com prioridade similar à do tratamento de água.
Ao mesmo tempo em que as tarifas precisam ser acessíveis à população, devem cobrir o custo do serviço, o que inclui o serviço de captar, tratar e distribuir a água, para, em seguida, coletar e tratar o esgoto. O direito humano à água e ao saneamento, reconhecido pela Assembleia-Geral da ONU em 2015, não diz que o serviço de água deve ser gratuito, mas sim acessível, permitindo a universalização do saneamento.
De onde vem o investimento pesado
Para fomentar o setor de saneamento, são necessários mais recursos do que é possível obter pelas tarifas de prestação dos serviços. Os repasses financeiros para projetos de saneamento no Brasil são realizados primordialmente pela Caixa Econômica Federal e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).
Com o lançamento do PAC pelo governo federal, em 2007, muito dinheiro foi destinado ao avanço do saneamento básico nos últimos anos. O PAC contratou cerca de R$ 46 bilhões para obras de coleta e tratamento de esgoto, abastecimento de água, drenagem e destinação final de lixo, de acordo com o 11º Balanço do PAC2, referente ao período 2011-2014. Foi uma época de recuperação para o setor.
Mas, mesmo com tanto investimento, ainda estamos longe do valor necessário para que as metas de universalização sejam atendidas, de acordo com as conclusões do relatório da Confederação Nacional da Indústria (CNI) Burocracia e Entraves ao Setor de Saneamento. Segundo o documento, para levar o abastecimento de água e o esgotamento sanitário a todo o País até 2033 – meta estabelecida no Plano Nacional de Saneamento Básico –, seria necessário mais do que dobrar o nível atual de investimentos no setor: passar de uma média de R$ 7,6 bilhões ao ano (referente ao período de 2002-2012) para R$ 15,2 bilhões entre 2013 e 2033. Seguindo a tendência atual de investimentos, até 2033 o Brasil chegaria a 79% de acesso a esgotamento sanitário; enquanto a universalização absoluta ocorreria apenas em 2054. Isto apenas se não houver alterações das políticas atualmente desenvolvidas.
Em um setor dessa magnitude, uma gestão eficiente é premissa básica para garantir a perenidade e avanço do serviço, pois erros de cálculo nas tarifas ou más decisões de investimento podem comprometer a viabilidade do negócio.
Com tantos desafios, resta uma pergunta: o saneamento é um bom negócio? Pilotto, da IFC, afirma que o setor de saneamento no Brasil pode propiciar retornos interessantes com as tarifas existentes, mas é necessário ter ganhos de eficiência na gestão desse serviço para poder fazer mais com a mesma tarifa, sem prejudicar a população.
Sem dúvida, o retorno do investimento em saneamento tende a ser muito mais alto para a sociedade do que para o prestador do serviço. “Muitos estudos já documentaram que há redução dos gastos com saúde após a implementação de redes coletoras de esgoto [como alternativa a fossas sépticas e esgoto a céu aberto] e de redes fornecedoras de água potável de qualidade [em substituição à água de poço e outras fontes]”, diz Pilotto.
O atraso no saneamento não é regra nos países não desenvolvidos, tendo em vista o exemplo do México e Venezuela, onde, segundo Eli da Veiga, a coleta de esgoto está muito mais avançada do que no Brasil. Mas, se nos questionarmos por que até hoje mais da metade da população é mantida sem acesso a este serviço, “a resposta dificilmente escapará de uma avaliação das mais severas sobre as elites brasileiras, que têm se mostrado bem despreocupadas com o fato de metade da população sofrer tão humilhante e atroz condição”, analisa. (Página 2/ #Envolverde)
* Publicado originalmente na Ed. 103 da Página 22.