Edição comemorativa reúne as aquarelas fluminenses do artista francês.
Por Rosane Pavam –
O artista da Corte Jean-Baptiste Debret jamais teria precisado sair às ruas. Aqui chegou, há 200 anos, apenas para pintar os personagens imperiais, encastelados nas habitações do poder. Mas algo o lançaria secretamente à cidade.
Talvez a noção europeia de que a história começava a se fazer por estas terras ou o pressentimento de que deveria recuperar, por meio da arte, a vida que lhe faltava. Ele perdera o filho e sua família desmoronara pouco antes.
Fora quase imediata, talvez por isso, a aceitação do convite de trabalho feito por dom João VI, que também o incumbira de criar a primeira academia brasileira de belas artes.
Sentado diretamente nas calçadas da capital do império, os jornais sobre a cabeça para se proteger do sol, ele desenharia por 15 anos um Rio de Janeiro quase inteiramente construído pelos negros, tratados a açoites públicos.
Debret tinha a mentalidade do repórter, mas principalmente a do historiador cujos olhos se viam arrebatados pelos contrastes sociais. Ele advogava que o trabalho enobrecesse a vida, ao contrário da crença elitista local. Eis por que conferira monumentalidade inesperada aos escravos e à gente comum, sobre os quais se sustentava a economia do País.
Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. Jean-Baptiste Debret. Imprensa Oficial, 625 págs., R$ 250
Tão importante quanto observar as aquarelas, reproduzidas em 150 litografias, é ler o texto sobre as cenas cotidianas, às vezes descritas com pesada ironia na sua Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil (como a dele, houve outras obras com título semelhante, a exemplo daquela de Rugendas, mas somente Debret detalhou os desenhos por meio da escrita).
Diz, por exemplo, sobre a morte de um jovem filho de escravos: “Se a perda dessa criança escrava dá à dona da casa a consolante esperança de um anjinho que por ela interceda no céu, sente-a também o senhor, privado de um capital, de dois mil francos talvez, que representaria esse imóvel vivo”.
Com a tradução pioneira de Sergio Milliet e organização do sociólogo Jacques Leenhardt, é recuperado um trabalho que a Biblioteca Imperial se recusara a incluir em seu acervo sob argumentação igualmente pitoresca: “Os franceses fazem coisa bem pior quando jogam os negros ao mar”.
Debret não pintou somente a vida desses escravos, mas a dos índios, embora, no último caso, o tivesse feito a partir de relatos alheios. Se tal obra permanece vívida na memória nacional, isto se deu porque o modernismo recuperou sua importância e o industrial Castro Maya adquiriu os três primeiros volumes da obra na França, construindo uma quarta encadernação a partir de originais soltos. (Carta Capital/ #Envolverde)
* Publicado originalmente na edição 907 de Carta Capital, com o título “A monumental gente comum”.