São Salvador, El Salvador, 23/4/2013 – O recrudescimento da violência criminal que vive El Salvador está esquentando o ambiente interno do país com um tom que recorda a passada guerra civil e que poderia comprometer a incipiente democracia local. Depois dos recentes ataques de gangues contra policiais, soldados e outros funcionários públicos, na Assembleia Legislativa se discute a decretação de estado de sítio nos municípios mais violentos, e o governo determinou a criação de três batalhões de resposta rápida, como os que existiram durante o conflito.
Essas unidades militares foram responsáveis no passado por inúmeros massacres contra a população civil, como o ocorrido em dezembro de 1981 no vilarejo El Mozote, no Departamento de Morazán, por parte de soldados do batalhão Atlacatl, que deixou mais de mil camponeses mortos. Ao mesmo tempo, policiais e cidadãos propõem abertamente a criação de grupos de extermínio de bandidos, à moda dos esquadrões da morte, os grupos paramilitares de extrema direita que atuaram no país na década de 1970 e em 1992.
“É perigosíssimo falar de estado de sítio e tudo mais, pois pode afetar o processo democrático do país”, ressaltou à IPS o coordenador da ecumênica Iniciativa Pastoral pela Vida e a Paz (Ipaz), Félix Arévalo. A Ipaz aglutina líderes de várias religiões que buscam uma saída negociada para o fenômeno da violência das gangues, também conhecidas na América Central como maras, que afeta este país de 6,3 milhões de habitantes.
Se o parlamento aprovar o estado de sítio, estarão suspensas as garantias constitucionais, como as de reunião e livre trânsito, além da militarização das áreas com altos níveis de homicídios. Esse estado de exceção foi imposto pela última vez em El Salvador durante a ofensiva guerrilheira denominada “até o topo”, de novembro de 1989, em plena guerra civil, que de 1980 a 1992 deixou 75 mil mortos e oito mil desaparecidos.
Agora a Presidência do país é exercida por um daqueles dirigentes guerrilheiros, Salvador Sánchez Cerén, da Frente Farabundo Martí para a Libertação Nacional (FMLN), convertida em partido político após os acordos de paz e no poder desde 2009.
Seu governo assegura que o recrudescimento da violência seria uma reação das gangues ao traslado, realizado em fevereiro, de 14 de seus líderes, de uma prisão comum para outra de segurança máxima, conhecida como Zacatraz, localizada no município de Zacatecoluca, 41 quilômetros a leste de São Salvador. Entre os que foram transferidos estavam alguns cabeças da MS13 e da Barrio 18, duas organizações criminosas que em março de 2012 permitiram uma trégua entre as maras que reduziu drasticamente o número de homicídios.
Raúl Mijango, mediador dessa trégua, já enterrada, assegurou à IPS que o fato de ter isolado esses líderes fez com que as ações desses grupos passassem ao comando de jovens mais fanáticos, que fazem da violência uma forma de vida. “No que esses jovens menos pensam é em acabar com esse conflito”, ressaltou.
A trégua foi considerada encerrada em maio de 2013, quando o então presidente Mauricio Funes (2009-2014), também da FMNL, foi forçado a destituir por uma questão técnico-legal o ministro de Justiça e Segurança, general David Munguía, um dos maiores defensores desse processo dentro do governo.
Até 20 de abril, as gangues assassinaram, além de cidadãos em geral, 20 policiais, seis militares, um promotor e seis carcereiros, em uma guerra não declarada, também alimentada pela reação policial e militar que matou dezenas de criminosos em enfrentamentos. No dia 18 de abril, sete deles foram abatidos por um esquadrão militar em Uluapa Arriba, parte do município de Zacatecoluca.
Inclusive, alguns policiais falam abertamente em assassiná-los. “Quando toparem conosco, vamos matá-los”, disse sem rodeios um policial a uma emissora de televisão local, mas com o rosto coberto por um capuz. Também nas redes sociais circulam vídeos caseiros de policiais e cidadãos defendendo o aniquilamento de mareros (membros das maras) e o uso dos esquadrões da morte dedicados a assassinar opositores de esquerda durante a guerra.
Em março o número de homicídios disparou. O mês passado foi o mais violento da última década até agora, segundo a polícia, com 481 homicídios, média de 16 assassinatos por dia, 56,2% mais do que em março de 2014. Se esse padrão for mantido, ao final de 2015 o país terá superado mais de cinco mil assassinatos e uma taxa de 86 homicídios para cada cem mil habitantes, bem acima dos 63 para cem mil com os quais fechou 2014.
O estado de sítio, ou de exceção, é defendido pelos deputados da direitista Grande Aliança pela Unidade Nacional, com 11 dos 84 membros da legislatura que começará em 1º de maio, após as eleições de março.
“Essa escalada de violência poderia ter sido evitada”, segundo Arévalo, “caso se tivesse recorrido a mecanismos de diálogo que também incluísse as gangues”, uma ideia rejeitada frontalmente pelos setores políticos, pelas reações virulentas da população contra esses grupos, que, se calcula, possuem 60 mil integrantes. O governo de Cerén fechou toda possibilidade de aproximação com esses grupos em janeiro.
Roberto Valent, representante residente do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), disse à IPS que a intensificação das ações das gangues é, em parte, uma resposta ao controle territorial que, por meio da polícia, o Estado procura exercer naqueles territórios que controlam. A ação policial é importante para abrir espaços à prevenção, reabilitação e reinserção socioeconômica nesses territórios, acrescentou. “É claramente uma reação à ação do Estado”, pontuou Valent, que atua como coordenador técnico do Conselho Nacional de Segurança Social e Convivência.
O Conselho foi criado pela Presidência, em setembro de 2014, para propor as linhas de ação a fim de enfrentar a criminalidade, com a participação de diferentes setores da sociedade e a contribuição técnica da cooperação internacional. Em janeiro o Conselho apresentou 124 medidas prioritárias que o governo pretende implantar para reduzir a criminalidade no país.
São necessários US$ 2 bilhões para impulsionar o programa durante cinco anos. Uma parte desses fundos já foi obtida e outra está sendo negociada. O programa pretende levar projetos educativos, de saúde e recreativos, bem como criar 250 mil postos de trabalho para jovens em situação de risco.
Porém, na prática, o governo se mostra mais interessado em endurecer sua política de perseguição, por meios policiais e militares. Além dos batalhões militares, o presidente anunciou uma reestruturação e o fortalecimento da polícia, bem como a criação de mais unidades policiais de elite para enfrentar as gangues.
Arévalo, do Ipaz, acredita que se deveria agir ao contrário: “Menos ação policial e mais prevenção e reinserção. Mexemos no vespeiro, o governo agiu torpemente, e não se pode impulsionar um plano com cadáveres caindo ao lado”. Envolverde/IPS