por Lúcio Flávio Pinto, Agência Amazônia Real –
Quem sabe da Amazônia?
O ciclo da borracha, chamado de “belle époque”, porque a Amazônia era a única fornecedora mundial do produto e foi a segunda maior exportadora do Brasil, durou menos de 50 anos, entre 1870 e 1912. Até hoje, esse período é considerado o mais importante da história da região, a ponto de merecer citações nos compêndios da história nacional, que, de ordinário, apesar das frases grandiloquentes, pouca atenção lhe efetivamente tem.
Hoje, o dia da Amazônia no calendário das datas assinaladas, o conhecimento melhorou bastante – mas, e o entendimento, a compreensão e a interpretação? Quem acompanha a história contemporânea da maior fronteira do país, com dois terços do seu território, que não seja por episódios, sem a devida contextualização e os elementos de continuidade? Quem é contemporâneo desta mítica parte do planeta, que emerge em momentos de tensão e conflito e, depois, submerge no conjunto de informações superficiais?
Pois o atual ciclo, que se pode dizer, genericamente, ser o das commodities e, mais especificamente, dos minérios, que puxa as outras matérias primas de exportação, já dura mais do que a era da borracha. Mesmo o período anterior, contudo, permanece envolto pelas brumas da desinformação e da mitologia, da má fé e da ingenuidade, da truculência e da impotência.
Chamado a explicar por que a Amazônia perdeu o monopólio da borracha no mundo e acabou despejada a uma posição de tal irrelevância que nem conseguiu garantir o abastecimento interno de borracha, um amazonólogo de algibeira imediatamente atribui a culpa aos imperialistas ingleses.
Claro: eles financiaram a saída ilegal, por contrabando, de sementes da hevea brasiliensis, espécie nativa da Amazônia, aclimataram a planta nos jardins do Kew Garden, a replantaram na Ásia, formaram plantios imensos e deslocaram para lá o centro de produção – muito mais abundante e, por isso, com preços mais competitivos.
Tudo isso aconteceu, mas, se não tivesse acontecido, ia dar no mesmo, talvez só algum tempo depois. Primeiro, não houve contrabando. A partida de sementes foi despachada regularmente pelo porto de Belém. Ninguém se importou com isso. Afinal, se só havia a seringueira na Amazônia, em nenhum outro lugar ela se desenvolveria melhor e com a mesma qualidade.
Mesmo os nativos e mesmo numa atividade que já era realizada há bastante tempo, deixaram de atentar corretamente para uma circunstância: a grande dispersão das árvores de borracha no meio de uma floresta com a média de 100 diferentes espécies por hectare. Só nessa diversidade biológica a borracha se dava bem. A homogeneização, como a feita nos extensos plantios asiáticos, a sujeitava a pragas, a principal das quais a desfolhava e prejudicava a produção da seiva.
A ecologia foi madrasta da borracha amazônica num momento em que o mundo, se industrializando intensamente, precisava de muito mais matéria prima do que a Amazônia poderia lhe proporcionar. A aparência de uniformidade que o verde dá, como cor dominante da paisagem, impediu a visão real do que se esconde na natureza e é o maior desafio para a sociedade humana: a incrível riqueza e diversidade de vida na Amazônia, sem igual na Terra, território da maior de todas as florestas tropicais.
Meio século depois, essa incompreensão foi o combustível do avanço acelerado do Brasil dominante sobre a última região que se incorporou ao Brasil. Uma data pode assinalar o início do novo ciclo: 1966. Foi nesse ano que o governo federal, já na ditadura militar, com mando vertical e impositivo a partir da sua sede, em Brasília, se armou de instrumentos e ferramentas para apoiar o novo bandeirante, novamente vindo do sul do país.
Incentivos e benefícios fiscais foram criados para suplementar o capital privado (ou mesmo substituí-lo e poupá-lo). Obras de infraestrutura, como as grandes estradas de penetração no coração ainda isolado da floresta, favoreciam a ocupação rápida e a mais convencional da nova colônia interna: a pecuária de corte.
Floresta era abatida para a formação de pastagem numa escala sem paralelo, na trilha de centenas de fazendas surgidas do dia para a noite. Esse ritmo foi ainda mais incrementado e ampliado em 1975, quando Brasília editou o II Plano de Desenvolvimento da Amazônia. Nada de veleidades de industrialização e autonomia através da substituição de importações, o caminho que levou o Brasil a ser uma das maiores economias mundiais, apesar dos acidentes políticos e as descontinuidades de percurso.
O efeito dessa dinâmica assustou o céu. Do alto de mais de 900 quilômetros de altura, o satélite americano Skylab deu o alerta, em 1976: suas câmeras fotografaram o maior incêndio de todos os tempos. Os cientistas da Nasa remeteram as imagens para o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) interpretar.
Antes que o trabalho fosse concluído, um cientista fez a denúncia: o incêndio, praticado pela Volkswagen, pela primeira vez criando gado e não veículos automotores, alcançava a fantástica dimensão de um milhão de hectares (10 mil quilômetros quadrados). O mundo ficou chocado, protestou e pressionou.
O resultado foi o início de um programa sistemático de acompanhamento das mudanças através de satélite, que fez do Inpe uma das maiores autoridades mundiais na matéria, apesar de que a área realmente queimada fosse de 9 mil hectares, menos de 1% do que fora anunciado. Ainda assim, um dos maiores crimes ecológicos documentados da história. O que leva a uma conclusão vital: boa intenção sem boa informação pode fazer mal, ao invés de bem, ainda que acabe sendo benéfica.
Em 1987, outro satélite, o NOAA-9, entrou novamente em cena para levar os pesquisadores brasileiros a anunciar os maiores desmatamentos e queimadas já praticados pelo homem em um único ano, desde que existe o registro da história: 200 mil km2 de todo tipo de cobertura vegetal e 80 mil km2 de floresta nativa.
O impacto foi tal, às vésperas da elaboração da nova constituição federal, que pretendia levar a hipoteca social à propriedade privada rural, permitindo a desapropriação de imóveis por interesse social, que o governo Sarney criou o programa Nossa Floresta.
Ao mesmo tempo, desacreditou a pesquisa. O ano de 1987 foi apagado da crônica do Inpe, que data de 1988 o início dos levantamentos sobre queimadas e desmatamentos.
O caminho da destruição estava franqueado. As mineradoras avançaram, junto com elas fazendeiros, madeireiros, grileiros, garimpeiros, peões, posseiros, colonos e, por último, sojeiros, entre tubarões e tilápias, cupins e formigas, motosserras e machados.
Hoje, a Amazônia é um dos maiores fornecedores mundiais de minério de ferro, bauxita manganês, caulim, bauxita, alumínio, ouro, cobre e níquel. Da principal mina, em Carajás, no Pará, todos os dias sai o maior trem de carga do mundo, abastecido de minério (30 milhões de dólares diários), para seguir para vários portos além-oceano.
Esse ciclo já dura mais do que o da borracha e gerou muito mais riquezas. Mas quem sabe dele neste dia da Amazônia?
A fotografia que abre este artigo é da mineração ilegal na Terra Indígena Tenharim do Igarapé Preto, no Amazonas ( Foto: Vinícius Mendonça/Ibama)
Além de colaborar com a agência Amazônia Real, Lúcio Flávio Pinto mantém quatro blogs, que podem ser consultados gratuitamente nos seguintes endereços:
* lucioflaviopinto.wordpress.com – acompanhamento sintonizado no dia a dia.
* valeqvale.wordpress.com – inteiramente dedicado à maior mineradora do país, dona de Carajás, a maior província mineral do mundo.
* amazoniahj.wordpress.com – uma enciclopédia da Amazônia contemporânea, já com centenas de verbetes, num banco de dados único, sem igual.
* cabanagem180.wordpress.com – documentos e análises sobre a maior rebelião popular da história do Brasil.
Lúcio Flávio Pinto é jornalista desde 1966. Sociólogo formado pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo, em 1973. Editor do Jornal Pessoal, publicação alternativa que circula em Belém (PA) desde 1987. Autor de mais de 20 livros sobre a Amazônia, entre eles, Guerra Amazônica, Jornalismo na linha de tiro e Contra o Poder. Por seu trabalho em defesa da verdade e contra as injustiças sociais, recebeu em Roma, em 1997, o prêmio Colombe d’oro per La Pace. Em 2005 recebeu o prêmio anual do Comittee for Jornalists Protection (CPJ), em Nova York, pela defesa da Amazônia e dos direitos humanos. Lúcio Flávio é o único jornalista brasileiro eleito entre os 100 heróis da liberdade de imprensa, pela organização internacional Repórteres Sem Fronteiras em 2014. Acesse o novo site do jornalista aqui www.lucioflaviopinto.com.