Por Hélio Rocha, Especial para a Edição 71 de Plurale em revista –
Vítimas de Samarco, Vale e BHP relatam abandono e barganha. Enquanto isso, o Brasil segue ameaçado por 54 barragens em risco
Às vésperas de se completarem cinco anos do desastre de Mariana, que deixou 19 mortos, vilarejos destruídos e 500 km de devastação no Rio Doce, as ações de publicidade da Vale e da Samarco vão surtindo efeito. Através da Fundação Renova, elas afirmam negociar com atingidos e recuperar o meio ambiente. Dos milhões investidos, porém, colhe-se o esquecimento dos danos causados, sobretudo, às atividades econômicas e ao ecossistema do Rio Doce. A mesma propaganda não fala sobre 54 barragens em risco no país. A maioria pertencente à Vale e em Minas Gerais.
Essas e outras informações restariam esquecidas sem o trabalho do Ministério Público e da Justiça, além de movimentos sociais e da imprensa. Nesta edição, Plurale em Revista buscou depoimentos de pessoas cuja vida erodiu junto à lama da Samarco, além de dados oficiais de repositórios das agências reguladoras, que documentam informações sobre a ameaça em que vivem populações rurais brasileiras.
Não esquecendo Brumadinho, mas voltando a atenção para a tragédia humana e ambiental de Mariana, Plurale conta histórias como as de Antônio Rodrigues, Marino D’Angelo, Patrícia Monteiro; Benilde Madeira e Neuza Batista. Entre cidadãos que perderam familiares, moradia, profissão e ganhos mensais, uma mesma história de tristeza e revolta, dada a forma como se conduzem as negociações com as empresas.
Tal lacuna opõe-se aos milhões em propaganda da Vale calculados pelo site Brasil de Fato, que, com tabelas de preço de anúncios do jornal Estado de Minas e do Jornal Nacional (JN) em 2019, calculou R$ 1 milhão para páginas inteiras no impresso e R$ 875 mil por cada trinta segundos no intervalo do JN, isso além de dezenas ou centenas de milhares para rádios e TVs afiliadas locais, e valores totais imensuráveis acumulados sobre R$ 0,40 para visualizações no YouTube.
Atingidos perdem identidade e sentem suas vidas negociadas
“Eu era Marino D’Angelo, hoje eu sou um atingido”, conta o agricultor de 51 anos, que perdeu suas terras e animais em Paracatu. Marino fazia parte de uma cooperativa que chegou a descarregar 10 mil litros de leite numa só entrega. Com o desastre, metade dos produtores abandonaram o ofício, resultando no empobrecimento e na dependência das ajudas da Vale e da Samarco através da Fundação Renova. “Eu me sinto um objeto, usado, no centro de um grande negócio que faz muito dinheiro, mas quando vem aqui conta cada centavo”, revolta-se Marino.
Geralmente, são pagos um salário mínimo, além de acréscimos por familiares dependentes, mas há também indenizações e outras reparações ainda pendentes. A maior parte dos desabrigados vive em apartamentos alugados pela fundação em Mariana, visto que a reconstrução dos vilarejos está atrasada. A indenização por automóveis perdidos também causou polêmica em 2016, porque a empresa, ainda antes da criação da Renova, ressarciu as perdas pela tabela Fipe, em alguns casos valores aquém do preço de mercado.
Caso em que ressarcimento não se pode mensurar, porém, é o da dona de casa Patrícia Monteiro, 33, que foi arrastada pela lama em Bento Rodrigues. Grávida, Patrícia sofreu um aborto e não teve direito a indenização. Segundo a legislação, seu filho não era “nascido vivo” e, portanto, não cabia indenização por morte, do que a Renova se valeu para eximir-se de despesa.
“O sentimento de perder tudo não é maior que perder um filho. Menos ainda quando o filho é tratado como nada, como se não tivesse existido.” O caso de Patrícia e do marido, o operário de construção civil Wesley Patrick, 28, segue na Justiça como um imbróglio quase sem solução.
Líder da Associação de Moradores de Bento Rodrigues, o motorista Antônio Pereira Gonçalves, 50, afirma que o acúmulo de problemas pessoais é agravado pela perda de identidade por falta de um lugar para morar, dado o caráter eternamente provisório dos aluguéis na área urbana. Os atrasos na construção do novo distrito também são alvo de críticas. Luz, asfalto e construções básicas estão instalados, mas não há casa para todos. “Até a casa simbólica, do primeiro tijolo, o pessoal foi lá, fez foto, saiu em tudo que é lugar e até hoje não está pronta.”
A conclusão dos moradores é de que ninguém vai para lá enquanto não houver lugar para todos. “A Samarco nos tirou juntos de lá. Ela que nos faça voltar juntos para lá”, declara Antônio.
Pescadores denunciam aniquilamento do Rio Doce
Serra abaixo, no curso do Rio Doce, a lama que assoreou as águas que abasteciam cidades e sustentavam milhares de agricultores e pescadores deixou o ecossistema aniquilado. E, com ela, abatida a vida de inúmeros pescadores. Um deles, Benilde Madeira, 53, presidente da Associação dos Pescadores de Aymorés/MG, conta que espécies podem ser extintas e que as águas estão ocupadas por piranhas.
Com desespero evidente na voz e expressando tristeza, ele mostra peixes mortos pelo assoreamento ou mutilados pelo numeroso predador. “Não se encontra mais curimba, surubim, só piranha. Com o assoreamento, a piranha, um peixezinho menor que consegue sobreviver na água cheia de lama, foi o que sobrou”. O relato é assustador na proporção apresentada por Benilde. “Eu vejo 80% de piranha e 20% de outros peixes”. Sem alimento, é esperado que as próprias piranhas morram, podendo extinguir a vida animal no Rio Doce, no longo prazo.
Neuza dos Santos, 53, pescadora de Santana do Paraíso/MG, mostra outro problema: o transporte fluvial. “Há lugares onde o rio sumiu. Precisamos ir de barco para a cidade e não dá mais pro barco passar.” Ocupados por terra e pedras deixadas há cinco anos pelos rejeitos de minério, córregos afluentes do Doce até hoje não estão recuperados, impedindo o acesso das embarcações que buscavam populações dos distritos mais afastados do município. “Agora, tem que andar até bem longe para pegar o barco.”
O coordenador de Integração do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Doce (CBH-Doce), Humberto Segalli, argumenta que estudos mostram melhora no rio, mas que os motivos devem ser naturais. “Percebemos as ações da Renova, mas são poucos resultados apresentados. A natureza tem seu processo natural de regeneração, mas leva tempo e as pessoas daqui precisam do rio, o que preocupa.”
Em consonância, o coordenador do curso de Engenharia Civil e Ambiental da Univale, Hernani Santana, afirma que “o rio tem apresentado capacidade natural de se recuperar, o que está dentro do esperado. Mas, trabalhando com as comunidades atingidas, a gente não entende direito como vai melhorar a ponto de restaurar a economia das pessoas. Da Renova, são muitas ações, números, mas pouca informação para a população”.
Recentemente, a Renova, mesmo com a fragilização da economia brasileira, em virtude da pandemia da Covid-19, chegou a suspender o pagamento do subsídio aos pescadores e agricultores atingidos, afirmando que eles já estavam aptos a manter suas próprias despesas. A Justiça determinou que tal decisão fosse suspensa e que a fundação voltasse a pagar o auxílio.
Barragens de alto risco se espalham pelo Brasil e ameaçam milhares de pessoas
O cenário da mineração hoje, no Brasil, é perigoso, com 54 barragens em iminência de ruptura. Segundo relatório da Agência Nacional de Mineração (ANM) o risco está disperso por todo o país. É o que mostra mapa divulgado pela ANM, em parceria com o Google Earth, com marcações que destacam a distribuição das barragens de risco pelo Brasil. Os ícones que apontam esses locais cobrem o mapa. Conforme a Agência Nacional de Águas (ANA), R$ 1,3 milhões de brasileiros foram prejudicados pelas 7 mil barragens já construídas no país.
Segundo Letícia Oliveira, coordenadora-estadual do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), que há mais de trinta anos faz a defesa nacional de comunidades afetadas pela mineração, “o MAB pressiona por ações como a criação de um estatuto legal para segurança dos atingidos, e incentiva mobilizações contra muitas construções. A situação da segurança é dramática”.
Entre abril e julho, sete barragens causaram remoção de pessoas. Em junho Forquilha I e III, no município de Ouro Preto, entraram em estado de alerta. Em abril, o mesmo ocorreu com a Mina de Timbopeba, mesmo município. Quase noventa pessoas foram removidas. Em ambos os casos, para apartamentos alugados na área urbana de Ouro Preto.
Conforme documento da ANM, o risco varia de aumento da pressão interna até concreto fragilizado. O protocolo aponta materiais errados como uma das causas, exemplificando tipos de cimento que erodem pela ação de umidade e temperatura, ficando como pele de crocodilo, com rachaduras entrecruzadas.
O órgão aponta três tipos de manutenção: preventiva, que é a avaliação periódica; preditiva, aplicando equipamentos para encontrar danos; corretivas, com suspensão de atividades para consertos. Os três requerem acompanhamento por empresa especializada, que foi uma das principais falhas nos dois desastres recentes da mineração, já que tinha sido atestada a confiabilidade das barragens.
Em nota, Renova afirma ter investido quase R$ 9 bilhões
Procurada por Plurale, a Renova diz ter investido R$ 8,85 bilhões em compensação e recuperação, sendo R$ 2,5 bilhões em indenizações e auxílios financeiros para 321 pessoas. Disse que pagou mais de R$ 100 milhões sobre lucro cessante em 2019. Quanto ao caso de Patrícia, a Fundação Renova disse simplesmente que “não comenta casos individuais”. Sobre a reconstrução dos vilarejos, sustenta que ela obedece a decisões com participação do MP, dos atingidos e de assessoria técnica.
Quanto ao Rio Doce, a Renova alega que a situação da água é similar ao momento anterior ao desastre, estando apta ao consumo, mas não apontou o estudo. Também diz que realiza contratação local de mão de obra, a fim de incentivar a economia das regiões afetadas, com apoio de ONGs, Universidades e outros parceiros.
A Vale afirma que se responsabiliza pelo caso, como sócia da Samarco e parte mantenedora da Renova. Defende suas despesas com publicidade “porque elas fazem parte dos esforços da empresa de dar transparência ao trabalho de reparação e segurança”, como a investigação detalhada das barragens e a adoção de métodos mais seguros de construção, com desativação de estruturas inseguras.
Também contatado, o Instituto Brasileiro de Mineração (Ibram) afirma se esforçar pela sustentabilidade da mineração. Diz que não é responsável por fiscalização e atestado de confiabilidade, mas que atua por legislação adequada e independência das empresas de segurança. Afirma zelar pela transparência nos trabalhos das empresas e pela fiscalização também pela sociedade civil organizada.
Entrevista com Cristina Serra, autora do livro “Tragédia em Mariana – A História do maior desastre ambiental do Brasil” (Editora Record)
Plurale – Após cinco anos cobrindo o desastre de Mariana, que síntese você faz da sua experiência no caso?
Cristina Serra – Essa é uma pergunta que eu tenho que responder de uma forma muito subjetiva. Mas eu comecei imediatamente no caso. Na semana seguinte a gente já estava em Mariana para o Fantástico, na Globo, e depois isso se estendeu por meses. Naquelas primeiras semanas o assunto principal ainda era a busca pelas vítimas e a “marcha da lama”, com os rejeitos de minério seguindo pelo Rio Doce até a foz no Espírito Santo, sem que a gente ainda soubesse quais seriam os danos. Então, até ali, ainda estávamos guiados pelos fatos, que vinham um atrás do outro.
Depois, houve o segundo momento, que foi a investigação do caso, quando eu comecei a perceber que não se tratava de um desastre de causas naturais, que era o argumento da Samarco. Ela tentou dizer que um tremor tinha abalado as estruturas da barragem de Fundão. Mas foi se descobrindo uma série de negligências que a gente imaginava que serviria de alerta para a atividade mineradora no Brasil. Durante os anos de 2016 e 2017 eu trabalhei no meu livro de Mariana com esse objetivo, tentando contribuir com esse alerta. E aí, veio Brumadinho. Ao mesmo tempo desfocou de Mariana, e ao mesmo tempo não permitiu que o livro acontecesse da forma esperada.
De todo modo, o foco do trabalho se tornou, e ainda é, a imensa irresponsabilidade dessas grandes empresas, de uma dimensão que Mariana não deu conta de mostrar, e ainda não sabemos se assim será com Brumadinho.
Plurale – Como você compara os dois desastres?
Cristina Serra – Às vezes se faz a comparação de mais de 200 mortos em Brumadinho com 19 em Mariana, mas isso não é correto. Não se mensura vidas humanas em quantidade. Tivesse morrido um, deveria ser a mesma coisa. Então, o correto é analisar em conjunto. São dois desastres que se somam num mesmo fundamento, a negligência com as estruturas de contenção de minérios, e o mesmo cenário institucional, que é o poder das econômico das mineradoras sobre o Estado. Uma cadeia que impacta empresas de fiscalização de segurança, órgãos de regulação, Governos, Legislação e Justiça.
Plurale – Qual é esse cenário, mais detalhadamente?
Cristina Serra Mineradoras como a Vale e a BHP Billiton, que eram as sócias controladoras da Samarco, são gigantes da economia brasileira. Mas também são empresas de uma atividade de alto impacto social e ambiental, o que faz com que uma cadeia muito grande e forte de monitoramento e controles de segurança deva atuar junto a elas. É aí que entra a importância do Estado. O caso dos laudos é fundamental pra gente entender esse cenário, porque nas duas barragens que se romperam – no meu caso, a que eu cobri, a de Fundão – o laudo da empresa de segurança era positivo.
O que ocorre é que a Vale, a BHP ou ainda a Samarco são empresas muito maiores do que a especializada em segurança, o que costuma fazer dela dependente do contrato que tem com a gigante multinacional. Não estou dizendo especificamente desse caso, que está na Justiça e só ela pode dizer, mas de uma forma geral. Isso se torna um problema sistêmico sem a devida atuação do Estado como regulador. E, nesse caso, tanto as autarquias do Executivo, como a ANM (Agência Nacional de Mineração), como a Legislação, estão sempre colocando o cadeado na casa arrombada, porque também não interessa ao poder político pressionar uma empresa desse porte.
Enquanto houver esse conflito de interesses, o privado das empresas de mineração e fiscalização, e o público das populações atingidas e do meio ambiente, não haverá uma equação que dê sustentabilidade social e ambiental a essa atividade econômica.
Plurale – No caso da Fundação Renova, como você vê a atuação na reparação dos atingidos?
Cristina Serra – Me preocupa muito a origem da Renova e o que ela pode implicar. Eu encerrei o livro em 2018, e desde então não estou dentro da cobertura de Mariana, então quanto aos últimos acontecimentos eu não posso falar. Mas lembro de quando a criaram e como ocorreu, numa negociação entre as grandes empresas e o Poder Público, sem a participação da população atingida. Surgiu ali uma “testa de ferro” das três empresas, num acordo com o Governo e a Justiça em que a vítima negocia diretamente com o algoz. Em termos práticos, negocia com a Vale, porque a Samarco zerou o caixa ainda em 2016, portanto a partir dali a Vale começou a bancar os custos da Fundação.
Plurale – E que implicações isso tem?
Cristina Serra – Eu tento me colocar no lugar da vítima, tendo que pedir dinheiro, moradia, à própria empresa que destruiu a minha vida. Isso sem falar nos casos mais subjetivos, como o de um trabalhador informal que perdeu o emprego na zona turística de Regência, que é um distrito de Linhares, no Espírito Santo, que atrai pessoas pelo turismo natural do projeto Tamar e por ser uma área de surfe. Como ele vai pedir ressarcimento, sem poder provar nada, porque trabalhava sem vínculo?
Plurale – Assim como a questão da demora nas reparações?
Cristina Serra – Esse caso também é evidente. O resultado fala por si só. Já são cinco anos desde o acidente e a Renova não conseguiu colocar as vilas em pé. Para quem conta com recursos de grandes mineradoras, como pode não ser possível construir 200 casas, um posto de saúde e uma escola, que era basicamente a estrutura de Bento Rodrigues? Não há resposta convincente pra isso.
Plurale – Você pretende continuar trabalhando nesse tema?
Cristina Serra – Claro. Essa cobertura teve impacto total na minha vida. Tomei a decisão de me mudar de Brasília para o Rio, deixei a política, que era o que eu cobria para a Globo. Vi o tamanho dessa questão e agora cuido de forma independente de temas ambientais. Inclusive quero escrever sobre Brumadinho, quem sabe focando mais nas memórias, nas histórias de vida que nunca serão as mesmas depois de 2019. A questão são os custos, não só materiais, que também são grandes, mas principalmente emocionais, de estar novamente tão próxima dessa devastação.
Plurale – Que papel você acha que a imprensa tem nesse problema da mineração?
Cristina Serra – Além dos problemas todos encadeados que eu falei, ainda tem a questão prática, urgente. O país tem centenas de barragens, hoje mais de 50 consideradas de alto risco pela ANM, algumas delas de massas falidas de empresas, que já nem estão aí para tomar conta. Uma delas, em Minas, me chama a atenção por ter rejeitos de extração de ouro, que deixa resíduos altamente tóxicos, e se encontra sobre comunidades até agora indefesas. Já sabemos que o Estado e a Justiça enxugam gelo, nesse caso, por todas as questões que a gente falou aqui. Não deixa de ser assim com o jornalismo, mas é nosso papel ser uma ferramenta a mais para evitar que o cadeado seja colocado, outra vez, quando já é tarde demais.
Fotos da Agência Brasil, Luiz Paulo Ferraz (foto de Cristina Serra), MAB, Arte da ANM/ Divulgação
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