Por DW Brasil –
Famílias ainda lutam para ser reconhecidas como atingidas pelo desastre, e aqueles que perderam suas casas após o rompimento da barragem aguardam lar definitivo. “É muito desgastante. É a estratégia do cansar.”
No terreno onde Alexsandro Marcos construía sua casa, sobraram poucos vestígios da vida pregressa ao rompimento da barragem de Fundão, da Samarco, Vale e BHP. A base de concreto que receberia as paredes resistiu, mas ficou totalmente encoberta pela enxurrada de lama que destruiu o distrito de Bento Rodrigues, em Mariana (MG), em 5 de novembro de 2015.
Marcos moraria com a companheira nos fundos da casa do pai, onde também criava alguns animais. A tragédia acabou com o vilarejo onde ele nasceu e passou a vida – e que a Fundação Renova, constituída para reparar os danos sociais, ambientais e econômicos da tragédia de Mariana, tenta reconstruir num outro local.
Nesse reassentamento, chamado Novo Bento, Marcos, a esposa e as duas filhas não terão um lar. Apesar de todas as evidências coletadas pela equipe independente de assessoria técnica, a Renova não o considera um atingido com direito à moradia.
“Não gosto nem de pensar. Eles não têm consideração com as pessoas, estão pouco se lixando para o que aconteceu, para o que a gente tinha”, diz Marcos sobre a Renova à DW.
Seis anos depois da tragédia, que matou imediatamente 19 pessoas, aqueles que perderam a casa após o impacto da lama continuam aguardando um lar definitivo. O primeiro prazo para entrega dos reassentamentos venceu em 31 de março de 2019. Duas outras datas foram fixadas pela Justiça e foram descumpridas: agosto de 2020 e fevereiro de 2021.
“Estratégia do cansar”
Especificamente em Mariana, os distritos de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo foram destruídos, e cerca de 442 famílias perderam suas moradias. Outras que residiam nas áreas afetadas não foram removidas pela Defesa Civil e convivem com os rejeitos de minério, estão isoladas e também aguardam reparação.
No município, o trabalho de assessoria técnica aos atingidos é feito pela Cáritas. A Justiça garantiu às comunidades o direito a esse serviço para que elas acompanhassem o processo e recebessem as compensações. Mas não é isso o que tem acontecido, segundo a organização.
“Nós vemos violações em vários âmbitos”, comenta Laís Labace, coordenadora operacional da Cáritas em Mariana.
A assessoria é responsável por cadastrar as famílias afetadas. Ao fim, um documento é produzido com o levantamento de todos os danos registrados e entregue à Renova, que tem 90 dias para apresentar a primeira proposta de indenização.
Até o momento, 1.200 famílias foram cadastradas – 259 delas não receberam a proposta dentro do prazo. Há quem aguarde mais de um ano por uma segunda resposta depois de questionar a oferta recebida.
“Os atingidos estão exaustos. É um processo muito desgastante. É a estratégia do cansar”, comenta Labace, que acumula relatos de adoecimento entre os assessorados na esteira do rompimento, como depressão, insônia e problemas cardíacos.
Reassentamento de Novo Bento não comporta todos os lotes destruídos pelos rejeitos, nem oferece possibilidade de plantio ou água para cuidar das criações, como no distrito original.
A insatisfação vai além da espera. No caso específico de Novo Bento, a área destinada não comportaria todos os lotes destruídos pelos rejeitos. O reassentamento também não representaria uma reparação total, já que fica numa área acidentada e não oferece possibilidade de plantio ou água para cuidar das criações – como era no distrito original.
A área destinada para a nova casa do pai de Marcos tem uma inclinação e precisa de muro de contenção. A construção de uma segunda residência, como estava em andamento no antigo terreno plano, tomaria praticamente todo o espaço e impossibilitaria o cultivo de uma horta e o galinheiro.
Com a recusa da Renova em devolver à família de Marcos o que ele construía, ele aguarda a decisão da Justiça.
“História de vida tirada”
A casa dos pais de Naife Cerceau, em Paracatu de Baixo, não estava na rota de lama. A família chegou a permanecer no sítio depois da tragédia, mas o isolamento fez com que eles buscassem um novo local. Como a Renova também não os reconheceu como atingidos, a Justiça foi acionada, e a fundação foi obrigada a arcar com o aluguel de uma outra propriedade.
No antigo sítio, o pai de Cerceau produzia leite, a mãe fazia e vendia doces. O moinho d’água que mantinham era bastante usado pela comunidade, que usava a ferramenta para transformar o milho em fubá.
“A história de vida deles é toda naquela casa. Eu nasci lá. A história da nossa vida toda foi tirada da gente”, diz Cerceau sobre o rompimento da barragem de rejeitos.
Segundo ela, a fundação se recusa a comprar um sítio do tamanho da propriedade da família em Paracatu de Baixo. O pai dela não se conforma. “É um desrespeito a maneira como eles nos tratam. A fundação foi feita para que o atingido tivesse amparo, mas ela faz exatamente o contrário”, diz.
O que diz a Renova
Questionada pela DW, a Fundação Renova informou que as obras dos reassentamentos de Bento Rodrigues e de Paracatu de Baixo devem ser concluídas em 2022. Não há prazo fixado para Gesteira, que deve abrigar 28 famílias.
Sobre casos de famílias que não foram reconhecidas como atingidas, a fundação respondeu que segue os critérios estabelecidos e que as que não foram consideradas elegíveis “têm a opção de solicitar a revisão da análise e de questionar a negativa judicialmente”.
Para a Cáritas, por outro lado, a fundação desrespeita os critérios, e as famílias citadas na reportagem teriam que ser contempladas segundo as diretrizes que regem a restituição à moradia.
Uma discussão está em andamento no Observatório do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) sobre uma possível repactuação do acordo fechado entre União, empresas e os governos de Minas Gerais e Espírito Santo. A Renova informou que esse fato “não implica paralisação, suspensão ou descontinuidade de quaisquer programas ou projetos atualmente em desenvolvimento”, e que medidas executadas como parte das ações de reparação seguem em andamento.
O tempo de espera
Em dezembro de 2020, a Samarco retomou suas operações com capacidade produtiva de 26% – ou seja, 8 milhões de toneladas de minério de ferro por ano. Segundo a mineradora, 8,4 mil trabalhadores atuam, direta ou indiretamente, nos estados de Minas Gerais e Espírito Santo.
Para os atingidos pelo rompimento da barragem de Fundão, a maioria acima de 60 anos, a vida nunca mais foi normal. Muitos deles não viveram para ver o fim do processo de reparação. Numa contagem feita pela Cáritas à época da retomada da mineradora, cem pessoas dos cerca de mil atingidos em Mariana já tinham morrido.
#Envolverde