Por Carolina de Barros e Alexandre Gonçalves Jr, de Marrakech –
Projeto de captação de água inovador busca transformar a vida de comunidades e da fauna e flora de regiões semi-áridas
Que água dá em nuvem, todo mundo sabe. Mas o que nem todos conhecem é a possibilidade de conseguir essa água antes mesmo de chover. Um estudo desenvolvido pela ONG Dar Si Hmad, em parceria com universidades ao redor do globo, traz a possibilidade de coletar água a partir de neblina e transformar regiões semi-áridas, dando nova vida à vegetação e às comunidades.
A prática, chamada de “fog harvesting” (fog, em inglês, significa neblina e harvest significa colheita), foi desenvolvida inspirada em mecanismos naturais. A água das neblinas se condensa e forma o orvalho nas folhas de árvores e sua coleta era uma prática cultural em comunidades antigas, onde hoje se desenvolvem os estudos. De forma parecida, o aparelho utilizado atualmente, que recebe o nome de CloudFisher, fica posicionado de forma perpendicular ao vento e capta a água das nuvens de neblina. Depois, quando ela se condensa, é direcionada para canos que levam para consumo ou irrigação.
A água obtida, no geral, é potável e pode ser bebida se for de regiões sem poluição. Mas contém uma quantidade pequena de minerais, o que não é ideal para consumo humano durante toda a vida. Por isso, ela é misturada com água de mananciais, bombeada do subsolo. O gasto energético para todo o processo é suprido por placas solares e os materiais são completamente sustentáveis.
Existe um projeto em andamento, denominado Morocco 2017. O objetivo é implantar 31 CloudFisher em regiões marroquinas e criar o maior coletor de neblina do mundo, de 1700 metros quadrados. Ele conseguirá captar 22 litros por metro quadrado por dia, em média, e beneficiará 13 comunidades próximas a região de Boutmezguida.
A ciência por trás das nuvens
María Victoria Marzol, pesquisadora do Departamento de Geografía e Historia da Universidad de La Laguna, trabalha com a prática desde a década de 90 na região de Tenerife. Ela explica que existem dois tipos de nuvens: verticais são aquelas que possuem muitos pingos de grande dimensão e são as que formam chuva, já as nuvens horizontais têm pingos menores e são as utilizadas como fonte de água nesse sistema.
Nas Ilhas Canárias, existe uma região próxima às montanhas onde se forma um fenômeno natural conhecido como mar de nuvens. Esse fenômeno está presente também em outras regiões onde é possível executar “fog harvesting”, como o Chile e Peru. As nuvens se formam entre as montanhas e, ao se deslocarem pela área, podem ser captadas pelos aparelhos. No Brasil, não é possível observar esse tipo de fenômeno pois é necessário que a costa seja banhada por correntes oceânicas frias.
Atualmente, a pesquisa procura definir quais os melhores materiais para usar e a eficiência de diferentes modelos. Os primeiros modelos foram implementados em 2015 e os mais usados são teflon e aço. As regiões em que há coleta de água de neblina têm o clima marcado pela maioria dos dias sem chuva, mas as condições de coleta podem variar de acordo com a altitude ou época do ano.
Valor ecológico da água de neblina
As nuvens de neblina que se formam em regiões de florestas ficam conhecidas entre os especialistas da área como “cloud forests”. Elas são responsáveis pelo aumento significativo da biodiversidade e do endemismo de espécies. Em áreas próximas de encostas de colina, as partes que apresentam nuvens de neblina em contato com as árvores têm estágios mais complexos do desenvolvimento da floresta, porque as plantas têm mais acesso a água.
Além disso, a água coletada pode ser usada para reabilitar ecossistemas. Um caso de êxito foi observado no Peru, a partir de 1996. Uma região que estava praticamente inóspita passou por uma sucessão ecológica, que é quando áreas sem floresta voltam a ter biodiversidade e se desenvolvem até o último estágio, quando tem a presença de grandes árvores. Nesse caso, ocorreu um processo completo de reabilitação da área, graças a irrigação feita atráves de água coletada das neblinas.
Empoderamento feminino pela água
A pesquisadora social do Instituto Tifawin, Leslie Dodson, explica que quando uma comunidade recebe água encanada sua relação com o líquido muda. O acesso mais fácil cria novas necessidades e novos usos, inclusive para atitudes que podem parecer básicas para os que têm esse bem natural de forma constante.
Na maioria das comunidades tradicionais do norte africano, onde o estudo foi realizado, as mulheres eram as responsáveis por conseguir água. Em média, mulheres adultas e crianças passavam cerca de três a quatro horas por dia em busca deste recurso. Com a água encanada vinda dos aparelhos de coleta de neblina, as meninas das comunidades beneficiadas puderam se dedicar aos estudos, já que não tinham mais que fazer esse trabalho. Além de poupar a força física das mulheres, também possibilita seu desenvolvimento cultural e a busca por outras funções dentro da comunidade.
Mas, mesmo com essas mudanças, Leslie reforça a importância de que as mulheres continuem com o papel de “guardiãs da água”, determinando o destino de uso e instruindo a comunidade sobre medidas adequadas para controle do recurso.
Water School
O uso da água de neblina, além do valor ecológico, também possui um valor social. A ONG, desde sua atuação nas comunidades, dobrou o número de crianças presentes nas escolas, totalizando 132. O aprendizado extracurricular explora conhecimentos científicos para que os jovens tomem consciência da captação e da manutenção do recurso hídrico. Os líderes do projeto acreditam que, com educação ambiental feita desde cedo para as crianças, elas conseguirão passar os ensinamentos para o restante de suas vilas.
Além disso, são ensinadas técnicas de higiene pessoal e limpeza dos ambientes. Antes, sem o acesso a água encanada, eram muito mais difíceis de serem executadas pelos habitantes dessas comunidades, que com o projeto podem “gastar” a água também com essas necessidades, ao invés de só para matar a sede.
O processo educativo se estende também às mulheres. Elas são alfabetizadas de diferentes maneiras, não só voltadas para a leitura. A escola as ensina como usar celulares e se comunicar com os técnicos das estações de coleta, reconhecer letras e números e também a usar ferramentas que possibilitem executar a manutenção dos canos e do sistema hidráulico que chega às comunidades. Uma parte importante deste projeto é que a tecnologia usada é aquela que se tem à mão, para que mesmo depois do apoio direto das universidades, as comunidades consigam se manter. “A água flui assim como as oportunidades”, resume Leslie. (Projeto Cásper Líbero/#Envolverde para a COP22)