Por Patrícia Kalil, especial para a Envolverde
Vão transformar o jardim do Éden, que tudo dava, em um agreste, onde tudo falta, diz o cientista Antônio Nobre um dos mais importantes especialistas brasileiros em Amazônia
A expansão do agronegócio de grãos e gado na Amazônia deve ser uma preocupação nacional, uma bandeira de todos os brasileiros. O cientista Antônio Donato Nobre do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) fala em entrevista exclusiva sobre a irresponsabilidade do atual governo na amplificação da hecatombe destrutiva da Amazônia. “A floresta sobreviveu por mais de 50 milhões de anos a vulcanismos, glaciações, meteoros, deriva do continente. Mas em menos de 50 anos está ameaçada pela ação de humanos” Leis criminosas e inconstitucionais estão sendo elaboradas e aprovadas em série pelo legislativo, parques nacionais reduzidos por decretos presidenciais, prefeituras vendidas ao setor, isso tudo feito na calada da noite e sem dar ouvidos aos alertas de cientistas de todas as áreas (clima, recursos hídricos, biodiversidade, antropólogos), sem consultar os povos da floresta, ignorando acordos internacionais da ONU do qual o país é signatária. Leia entrevista completa:
PATRÍCIA KALIL: Desmatar uma área de floresta é mais que derrubar um monte de árvores, é também tirar pessoas e animais que moram e dependem dessa parte da floresta. Quais são os impactos sociais, ambientais e econômicos do desmatamento que não têm entrado na planilha de custos do governo?
ANTONIO NOBRE: Recentemente descobriram um número astronômico de espécies biológicas desconhecidas, especialmente de microrganismos. Tais descobertas eleva a projeção do número de espécies na Terra para acima de um bilhão, podendo chegar a muitos bilhões. Na Amazônia não é incomum expedições botânicas, depois de séculos de inventários, ainda descobrirem novas espécies até de árvores. Há tempos que se sabe da rede extraordinária de colaboração entre plantas, animais e micróbios nas florestas. Um empobrecimento decorrente da ação de madeireiros, caçadores e pela degradação climática, vai comprometer a vida e a função ambiental destas usinas de serviços ecológicos que são as florestas. A destruição da vida leva à aridificação da terra, transformando o jardim do Éden que tudo dava em um agreste onde tudo falta. Basta olhar para o sertão no polígono das secas para entender o que esperar da degradação da Amazônia
PK: O que está me dizendo é que a floresta tem mais valor em pé. Como valorizar os serviços ambientais da Amazônia? Quanto vale a chuva? Quanto vale a nossa biodiversidade?
ANTONIO NOBRE: É preciso que a humanidade desperte para o fato de que ela existe em uma película delgadíssima, sobre uma rodopiante bola de pedra com 12 mil km de diâmetro, que viaja no inóspito espaço sideral a uma velocidade 90 vezes maior que a velocidade do som. O incrível conforto que apreciamos nesta improvável nave espacial terrestre é o resultado do trabalho incessante e extraordinário ao longo de bilhões de anos, de trilhões de gerações, de quatrilhões de organismos, que regulam a composição da atmosfera e com ela o funcionamento ameno do clima. Sem os ecossistemas acaba o conforto climático, e com isso entramos na categoria de todos os demais corpos celestes conhecidos, onde impera a violência geofísica. Ou seja, sem as florestas e os demais ecossistemas, estaremos como o alcoólatra sem seu fígado. A analogia com o próprio corpo e o imprescindível de seus órgãos é a melhor forma, a meu ver, para que as pessoas despertem para o valor dos serviços ambientais dos ecossistemas. Monetização não me parece ser o melhor caminho, porque passa para a carteira fria um compromisso que precisa engajar-se no calor do coração. O que está em jogo não são apenas riquezas no sentido das ignoradas externalidades do capitalismo; o que conta agora é a própria existência da humanidade.
PK: A recuperação da floresta é sempre possível ou a partir de uma escala de desmatamento pode não ter mais volta? O que significa isso na prática? Um deserto?
ANTONIO NOBRE: A natureza em Gaia opera poderosamente as transformações planetárias. Os continentes foram colonizados há 400 milhões de anos. Ao longo deste período ocorreram muitas oscilações climáticas e de vegetação, sempre atenuadas e recuperadas pela capacidade da vida de se autopromover. A condição de extraordinário equilíbrio e conforto recente, durante os 11 mil anos do holoceno, foi o que permitiu a evolução do homo sapiens, da agricultura, e de todos os desenvolvimentos incríveis que produziram a civilização global. As florestas desempenharam e ainda tem papel central neste equilíbrio climático. Perder tal equilíbrio significa colocar em movimento os mecanismos de Gaia para recuperação, para quem 10 milhões de anos é um curto lapso de tempo. Aparecem evidências científicas de que grandes desertos de hoje foram grandes florestas poucos milênios atrás, florestas que foram destruídas por ação humana. A floresta Amazônica tem se desenvolvido de forma quase ininterrupta por mais de 50 milhões de anos. Com sua arbitrária destruição física e climática estaremos condenando a Terra a novo processo de evolução, que levará outros tantos milhões de anos. Simples assim.
PK: Qual a relação da floresta com o ciclo da água, tanto o papel da floresta na recarga de aquíferos como na transpiração de água?
ANTONIO NOBRE: O papel da floresta no ciclo da água continental é essencial, indispensável, sine qua non. A primeira e não óbvia função tem a ver com o ciclo atmosférico da água, de como a transpiração verde mantêm o ar úmido, de como os aromas da floresta se transformam em sementes de condensação de nuvens, de como esses dois efeitos atuam em sinergia, bombeando vapor do oceano para o continente. Outras funções igualmente importantes e conhecidas têm a ver com a regularização dos fluxos superficiais, facilitando a infiltração e reposição dos imensos e essenciais estoques de águas subterrânea, seguida da sucção desta água pelas estruturas inteligentes das raízes, e seu bombeamento contra a força da gravidade, por dezenas de metros, pelos elaborados vasos nos troncos e galhos, até a devolução na irrigação vaporosa da atmosfera, fechando o ciclo.
PK: É verdade que a floresta pulsa como um coração para bombear toda a água transpirada para dentro do continente? Como isso funciona?
ANTONIO NOBRE: Durante a época em que a zona de convergência intertropical se move para o sul, facilitando a entrada de ar úmido na Amazônia, as árvores se beneficiam da abundância de chuvas; na outra parte mais seca do ano as árvores transpiram ainda mais água para a atmosfera, propelindo a bomba biótica que mantém a entrada de ar úmido na Amazônia, contrapondo a seca e mantendo a floresta úmida. Esse é o pulsar, que na estação úmida tem suficiente força para bombear os rios voadores para a zona meridional da América do Sul, e na estação seca mantêm o fluxo de chuvas para a própria amazônia.
PK: Vamos falar um pouco sobre a história e a pré-história da Amazônia. Quando e como essa floresta se formou?
ANTONIO NOBRE: Muitas indicações existem colocando a origem da floresta Amazônica alguns milhões de anos após o grande choque do meteoro que acabou com os dinossauros, 65 milhões de anos atrás. Naquele tempo a América do Sul havia acabado de se separar da África, e por dezenas de milhões de anos seguiria como continente ilha, isolado por oceanos. Muito da diversidade de espécies surgiram neste quase isolamento. Estudo feito com fóssil no fundo do lago Titicaca, no altiplano Boliviano, mostra que nos últimos 25 mil anos a Amazônia foi coberta por floresta densa, de dossel fechado. Outros estudos mostram uma conexão de floresta entre a mata Atlântica e a floresta Amazônica. Tal constância de cobertura florestal densa, dadas as glaciações e outras perturbações climáticas de escala planetária, somente pode ser explicada por uma capacidade inata da floresta de criar seu próprio clima. Desta constatação surgiu a teoria da Bomba Biótica de umidade, que demonstrou como a floresta consegue superar adversidades climáticas através de elaborados mecanismos de controle das chuvas e dos ventos.
PK: Há registros de paleoindígenas de mais de 20 mil anos, tendo um pico de 10 milhões de habitantes na região antes da chegada de Cabral. O que podemos aprender com esses povos que moraram por tanto tempo na floresta sem destruí-la, mas ao contrário, criando um grande pomar com a domesticação de espécies?
ANTONIO NOBRE: Podemos aprender com esses povos, cujos conhecimentos os nativos de hoje ainda guardam memórias em suas culturas, que é possível conviver civilizações avançadas com a permanência da floresta em pé. A mentalidade maléfica do desmatamento sem limites é uma degeneração cultural que levou muitos povos da antiguidade ao descalabro ambiental e colapso. Por uma coincidência histórica quando essa degeneração surgiu na Europa ocidental, a destruição de florestas não foi correspondida imediatamente com a degradação climática porque as florestas da Rússia mais a Leste forneciam rios voadores que mantiveram o regime de chuvas. E esses europeus que destruíram florestas lá colonizaram a América do Sul, e vieram destruir florestas aqui também. Por incrível coincidência, aqui também a destruição da mata Atlântica, excetuando o nordeste, produziu pouca consequência nas chuvas, porque aqui a Amazônia fez o mesmo papel que a Rússia de manter os rios voadores que mantiveram as chuvas na parte Leste desmatada do continente.
PK: A natureza dá ensinamentos profundos sobre cooperação e interdependência. O mercado e os governos do mundo todo, por outro lado, ainda usam uma cartilha ultrapassada que prega a competição e a vantagem acima da promoção de mais equilíbrio. Com cada vez mais evidências e pesquisas relacionadas às mudanças climáticas globais e ao efeito estufa, com cada vez mais troca de informação entre pessoas de todo o mundo, é possível que os governos e corporações globais tenham que assumir uma postura mais consciente sobre o futuro do planeta?
ANTONIO NOBRE: A maior parte das corporações, bancos e empresários passou por uma seleção que não admitia quem não entrasse no jogo sem ética de poder e dinheiro. Quase todos os governos foram cooptados e trabalham para esses interesses que somente miram no curto prazo, mas que usam todo tipo de artifício para permanecerem na dominação da humanidade no longuíssimo prazo. A forma como operam, o perfil humano dos que se arrojam às alturas destas elites dominantes, parecem ter uma característica em comum: sofrem todos de uma enfermidade que psiquiatras chamariam de autismo. Estabeleceram objetivos de dominação de forma muito similar àquela na qual opera o crime organizado, e atuam também comprando a mídia e formatando o sistema educacional, fazendo lavagem cerebral para que a humanidade não tome consciência da dominação que está levando a civilização global para a ruína. Portanto, sem algum tipo de litigação que coloque executivos e donos do capital nas barras dos tribunais, responsabilizados por tanta ganância e maldade destrutiva, dificilmente agirão de forma mais responsável.
PK: E como vai o investimento em pesquisa na Amazônia?
ANTONIO NOBRE: Como nosso maior tesouro, o Brasil deveria priorizar conhecer todo o potencial da vida na Amazônia. Existe até uma nova engenharia crescendo no mundo, a biomimética, ou como inspirar-se na tecnologia da natureza para fazer avançar a tecnologia humana. A miríade de organismos que temos no país deveria significar que o Brasil poderia ser a Arábia Saudita verde, gerando uma torrente de riquezas tecnológicas que nos permitiria abandonar a posição de colônia das commodities. Mas infelizmente não é o que vemos. A pesquisa Amazônica sofre historicamente de inanição de fundos oficiais, e agora vivendo a hecatombe dos cortes onde um dos institutos mais respeitados, o Museu Goeldi, está prestes a fechar as portas por falta de recursos.
PK: Como é a educação e conhecimento ambiental dos brasileiro? E dos nossos gestores? Se houvesse alguma medição sobre alfabetização ambiental, como estaria o governo atual?
ANTONIO NOBRE: A preocupação ambiental dos brasileiros é maior do que seria de se supor, considerando o baixo nível da educação oferecida no país. Pelo menos vemos consistentemente nas pesquisas de opinião pública a contrariedade e temor da sociedade com a destruição da floresta e com a degradação climática. Já o governo atual não entra nesta contabilidade, porque não representa a sociedade, atua de costas e com interesses opostos aos interesses da Nação. Não acho nem que possa ser chamado de analfabetismo ambiental as posturas do governo, senão de determinada e cega intenção de apropriação de riquezas, a despeito das consequências que o açambarca e devora possa trazer.
PK: Qual é a mensagem para as pessoas que não moram na Amazônia mas gostariam de ajudar a defendê-la. O que cada um de nós pode fazer?
ANTONIO NOBRE: É preciso que despertemos amor e respeito pela Amazônia. Amor por sua cornucópia de vida, o verde em nosso berço esplêndido. Respeito por sua potência ambiental e climática. Os povos nativos sempre cultivaram uma veneração pela capacidade extraordinária da floresta de conceber e manter a própria vida. Já para ajudar o Brasil torna-se imperioso que consigamos recuperar a democracia, colocando no poder pessoas sensatas e compromissadas com os interesses mais nobres em benefício do País. (Envolverde)