por Ricardo Abramovay* –
2021 será o ano da retomada do multilateralismo, que permitiu ao mundo o mais importante compromisso internacional de todos os tempos: o Acordo Climático de Paris. Em dezembro de 2015, 192 países selaram a ambição de limitar a elevação da temperatura global média a um patamar entre 1,5ºC e 2ºC. Agora, a vitória de Joe Biden nos EUA, a formulação de um Green Deal europeu e os compromissos recentemente assumidos pela China aproximam o mundo deste objetivo. Os anúncios feitos pela Índia, pelo Japão, pela Grã-Bretanha e pela Coreia do Sul vão exatamente na mesma direção.
O Acordo de Paris contém uma cláusula que parecia inviabilizá-lo, mas que se mostrou, ao que tudo indica, eficiente. Cada país se comprometia com metas voluntárias, estabelecidas sem a interferência de qualquer outro país ou de uma autoridade internacional. São as Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs, na sigla em inglês). Era um mecanismo inédito.
O resultado foi que, se todos cumprissem suas metas, a elevação da temperatura global média até 2100 seria bem superior ao objetivo internacional de limitá-la a dois graus. A estimativa era que se chegaria a catastróficos 3,6ºC de aumento da temperatura global média. Muita gente viu esse número como expressão da inocuidade do Acordo de Paris e da impossibilidade de uma colaboração internacional construtiva.
Mas o Acordo contém um mecanismo que se mostrou inteligente. Ele postula que, a cada cinco anos, todos os países signatários se comprometeriam a ampliar sua ambição, estabelecendo objetivos nacionais de redução de emissões maiores que os de cinco anos atrás. Claro que nenhum país é obrigado a fazer isso e alguns, como o Brasil, a Arábia Saudita, a Indonésia, o México e a Austrália, não ampliaram e até reduziram sua ambição.
Na celebração dos cinco anos do Acordo de Paris, líderes de setenta países reuniram-se virtualmente com dirigentes empresariais, prefeitos e organizações da sociedade civil, na Cúpula da Ambição Climática. Os resultados são promissores. Conforme relatório da Carbon Action Tracker, está claro que a “transição para uma sociedade de emissão zero já começou”.
Isso não quer dizer que a luta contra o que Antonio Guterrez chamou de “emergência climática” esteja ganha. A saída de Trump do Acordo de Paris, a explosão do desmatamento na Amazônia sob Bolsonaro, a continuidade da abertura de usinas a carvão na China e a pressão que os interesses fósseis vão exercer contra os planos do governo Joe Biden são sinais claros dos riscos atuais.
O dado novo é que já são 127 os países que se comprometem com a neutralidade de suas emissões de gases de efeito estufa até meados deste século. Se estes países cumprirem suas metas, a elevação da temperatura global média até 2100 será bem menor do que a prevista inicialmente no Acordo de Paris cinco anos atrás. O estudo da Carbon Action Tracker calcula que o aumento da temperatura global média seria de 2,1ºC e não mais de 3,5ºC, como apontava a ambição estabelecida em 2015.
É claro que promessas podem ser simplesmente palavras. O importante é que estas novas metas se materializam em planos cuja ambição se apoia em inovações que, pouco a pouco, se convertem no padrão global dominante. Os países que se recusam a adotar metas mais ambiciosas são aqueles cuja economia concentra-se em recursos fósseis, ou que estão distantes da fronteira científica e tecnológica que vai marcar os setores mais importantes da economia contemporânea, ou seja, a energia, a mobilidade e a produção de materiais.
A China, por exemplo, vai instalar daqui até 2050 o correspondente a mais de cinquenta usinas de Itaipu em energia solar e eólica. Índia, Japão, Coreia do Sul e a própria China estão investindo pesado na total eletrificação de seu sistema de transportes terrestres. Joe Biden, que recoloca os EUA dentro do Acordo de Paris no primeiro dia de seu governo, quer tornar o sistema energético dos Estados Unidos neutro em carbono até 2035. O conjunto da economia norte-americana deve ser descarbonizado até 2050.
Estas metas só podem ser atingidas com transformações profundas na vida social. Uma sociedade com mobilidade terrestre eletrificada significa a supressão dos postos de gasolina e das oficinas mecânicas. As residências hoje aquecidas por gás ou óleo terão que converter seus equipamentos para a eletricidade. Estes são apenas alguns exemplos que mostram a profundidade do impacto que o combate à emergência climática terá sobre a vida dos cidadãos.
Ao mesmo tempo, a oportunidade é extraordinária, pois está aberto um caminho fértil para o aprofundamento da inovação científica e tecnológica em todos os campos da vida social.
O Brasil, que era líder climático, foi colocado pelo atual governo como adversário deste movimento. Junto com a Indonésia, somos os únicos países do mundo em que metade das emissões de gases de efeito estufa deriva de desmatamento. Combater o desmatamento não exige ciência, tecnologia, nem tampouco transformações econômicas, sociais e culturais como as necessárias para a luta climática nos países em que o grosso das emissões vem da queima de combustíveis fósseis.
A diplomacia da próxima década será, cada vez mais, regida por questões socioambientais. Erosão da biodiversidade e emergência climática serão os temas das duas mais importantes conferências globais de 2021, a da biodiversidade, a ser realizada na China, e a climática, que ocorrerá em Glasgow, na Escócia. E o Brasil, que poderia se apresentar ao mundo como potência ambiental, protegendo a Amazônia, patrimônio essencial para enfrentar a emergência climática e valorizando sua sociobiodiversidade, está optando por se afastar da mais importante fronteira científica e tecnológica da inovação contemporânea. Ser pária internacional hoje não traz apenas consequências diplomáticas. É uma condição que condena a própria economia à retaguarda daquilo que o mundo tem hoje de mais avançado.
Os votos só podem ser de que em 2021 cresça a mobilização democrática contra a seita fundamentalista que desperdiça os benefícios que o Brasil pode tirar de sua contribuição à luta global contra a emergência climática e a erosão da biodiversidade.
Imagem de destaque Anja🤗#helpinghands #solidarity#stays healthy🙏 por Pixabay
Ricardo Abramovay é professor Sênior do Programa de Ciência Ambiental do IEE/USP. Foi Autor de “Amazônia: Por uma Economia do Conhecimento da Natureza” (Ed. Elefante/Terceira Via, São Paulo).
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