Por Malu Ribeiro –
Os jacarés de papo amarelo que sobrevivem em lagoas e rios da Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro, em águas poluídas por esgotos sem tratamento e lixo, em regiões bastante adensadas, não chamam a atenção dos cariocas como fazia o “Teimoso” – um jacaré paulistano que apareceu no poluído rio Tietê no início dos anos 90. A surpreendente persistência do jacaré de São Paulo em viver nas águas contaminadas do Tietê, em plena Avenida Marginal, despertou nos paulistas o desejo de salvar o rio. Esse desejo coletivo, mas adormecido, resultou em uma enorme mobilização, que reuniu mais de um milhão e duzentos mil cidadãos em um abaixo-assinado para despoluição do maior rio do Estado.
Ao relembrar a história do “Teimoso” para um grupo de cariocas reunidos no Jardim Botânico do Rio de Janeiro para o lançamento do projeto Observando os Rios, que levará cidadãos e grupos de voluntários a coletar e analisar, mensalmente, a qualidade da água de rios urbanos, ouvimos vários depoimentos sobre a triste condição da qualidade da água doce e do mar. E em todos as histórias contadas havia o mesmo desejo: despoluir e recuperar a água dos rios, lagoas e bacias hidrográficas, tornando-os saudáveis.
No Rio de Janeiro, a exuberância da natureza e espécies ameaçadas de extinção, como o jacaré de papo amarelo, convivem com o crescimento urbano, com a falta de saneamento, com o trânsito intenso e com obras de infraestrutura que vêm mudando a paisagem da cidade rapidamente. Por isto, um dos papéis do projeto Observando os Rios é chamar a atenção das pessoas, fazendo-as olhar para esses rios e pequenos córregos urbanos como espelhos do nosso comportamento. Monitorar a qualidade da água é uma forma de sensibilizar, engajar e mobilizar cidadãos para a cidadania ambiental.
A primeira coleta de água com os integrantes dos novos grupos de monitoramento do Rio de Janeiro foi realizada no rio dos Macacos, na sub-bacia da Lagoa Rodrigo de Freitas, em maio deste ano. Esse rio nasce no Morro da Vista Chinesa, protegido pelo Parque Nacional da Tijuca, e corta o Jardim Botânico. Mas, apesar da aparência cristalina, suas águas recebem em seu curso de apenas 4,6 km que atravessa comunidades, ruas e avenidas pavimentadas, despejos de esgotos domésticos sem tratamento e lixo. A existência da floresta protegida mantém as nascentes e corpos d’águas perenes, o que, infelizmente, não é suficiente para garantir a qualidade ao longo do curso.
Os indicadores medidos no rio dos Macacos pelos voluntários do Observando os Rios, apontam que a qualidade da água está regular e ruim, um alerta para que a sociedade mude comportamento, cobre investimentos em saneamento básico e se engaje em ações locais.
O desafio de sanear rios urbanos é mundial. Recentemente, o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, determinou a ampliação de uma legislação norte-americana, chamada de “Lei da Água” e que trata do controle de poluição dos grandes e pequenos rios de forma que todos os corpos d’água de uma bacia hidrográfica sejam protegidos com o mesmo rigor. A determinação foi aplaudida por ambientalistas e juristas, porém, desacreditada por democratas e setores econômicos que ameaçam recorrer ao Congresso e aos tribunais pelo pretenso direito de poluir rios que consideram menos importantes.
Em um comunicado oficial, o presidente Obama declarou que “um em cada três americanos recebe água potável a partir de rios que não contam com uma proteção clara, cujas águas foram deixadas vulneráveis à poluição e esse atraso custa caro a nossa economia”.
Aqui no Brasil, a situação dos pequenos rios, córregos urbanos e lagoas é ainda pior. Nossas águas não estão desprotegidas pela legislação e desde a Constituição de 1988 é proibido lançar esgotos sem tratamento em qualquer corpo d’água. O problema aqui é que, além de não haver respeito a Lei, fiscalização e punições efetivas, a norma que regulamenta em que padrão devem ocorrer os lançamentos de esgotos tratados é diferente de acordo com a categoria dos rios. Os mais nobres, destinados a usos ecossistêmicos e múltiplos, incluindo o abastecimento público, são os de classes 1, 2 e 3. Já os rios de classe 4 são os menos nobres, utilizados para diluir esgotos tratados com baixa eficiência, por sistemas que retiram apenas cargas orgânicas.
Por isso, é tão difícil conseguir promover a despoluição de grandes rios como o Tietê, ou mesmo garantir a boa condição da água do mar, das praias e lagoas com padrões saudáveis. Os pequenos córregos e rios de classe 4 recebem, de forma legal ou irregular, toneladas de poluentes orgânicos e químicos e não têm volume suficiente para diluir essas cargas de poluição. Todos esses rios correm para o rio maior da bacia hidrográfica, que mesmo estando enquadrado em outra faixa, como de classe 3 ou 2, não atingem esse padrão de qualidade devido ao grande número de afluentes de classe 4 que recebem. O mesmo ocorre com as lagoas e com a água do mar, destino final das bacias hidrográficas.
As águas seguem um único ciclo harmônico, o da natureza, e não podem ser enquadradas por legislações como a brasileira, datada dos anos 70, e que são reeditadas por resoluções e regulamentos a cada década para atender interesses de setores econômicos.
A quem interessa manter no Brasil rios para diluir esgotos? Para a Fundação SOS Mata Atlântica essa legislação precisa ser revista e modernizada, acabando com rios de classe 4 no país, sendo assim mais rigorosa no combate a emissão de poluentes na fonte de origem.
O exemplo de rios como o Jundiaí e o Lavapés, ambos no interior paulista, que após investimentos em saneamento básico e engajamento da sociedade, saíram da condição de rios de classe 4 para classe 3, é a comprovação de que reunir cidadãos, de forma voluntária, para monitorar a qualidade da água dos rios traz resultados efetivos, capazes de transformar a realidade e de nos devolver jacarés, peixes, água boa e a dignidade. (SOS Mata Atlântica/ #Envolverde)
* Malu Ribeiro é coordenadora da Rede das Águas da Fundação SOS Mata Atlântica, ONG brasileira que desenvolve projetos e campanhas em defesa das Florestas, do Mar e da qualidade de vida nas Cidades.
** Publicado originalmente no Brasil Post e retirado do site SOS Mata Atlântica.