Crisanto Tseremey’wá destaca que colonização ainda se coloca à frente da construção coletiva pela mitigação do clima: “Guardamos floresta em pé desde sempre, não porque a usamos, mas porque ela é parte da gente”
Lideranças indígenas e de comunidades tradicionais cobraram a inclusão participativa na formulação e na implementação de financiamento climático durante a COP27. No Brasil Climate Action Hub na manhã deste sábado, 12, Crisanto Tseremey’wá destacou que a colonização ainda se coloca à frente da construção coletiva pela mitigação do clima. Para pesquisadores, o acesso dessas populações aos instrumentos é fundamental para a efetividade de políticas de resposta à emergência climática.
“A colonização, que nos coloniza até hoje, ainda atrapalha o processo de construção coletiva para a mitigação do clima. Vale lembrar que as leis dos povos indígenas são do direito cultural e natural, mas, nessa batalha, conseguimos assimilar a cultura eurocêntrica de adotar as leis escritas e impusemos, no estado de Mato Grosso, que esses instrumentos [de financiamento climático] valessem para nós e assim foi. Esse recurso não é um pagamento. É porque nós guardamos floresta em pé desde sempre, não porque a usamos, mas porque ela é parte da gente. Nós temos valores diferentes do econômico e financeiro”, disse Tseremey’wá, presidente da FEPOIMT (Federação dos Povos e Organizações Indígenas de Mato Grosso), que participou do painel “REDD+: instrumento estratégico para aumentar a ambição na conservação das florestas tropicais”.
Mais cedo, Juliana Kerexu, coordenadora da Comissão Guarani Yvopurá da Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), integrou a discussão “O papel do financiamento global do clima na proteção das florestas tropicais – como alcançar reduções efetivas de emissões” e defendeu a importância de investimentos também para a proteção de biomas além da Amazônia Legal, que compreende nove estados e áreas de transição com o Cerrado. “O mundo precisa enxergar que todos os biomas brasileiros estão conectados, tanto nos saberes tradicionais, quanto biologicamente”.
Também participaram do painel “O papel do financiamento global do clima na proteção das florestas tropicais – como alcançar reduções efetivas de emissões” Eugênio Pantoja, diretor de Políticas Públicas e Desenvolvimento Territorial do IPAM (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia); Susan Gardner, diretora de Ecossistemas do PNUMA (Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente); Juliana Santiago, líder de Engajamento da Emergent com o Brasil; Leila Saraiva, conselheira Política do INESC (Instituto de Estudos Socioeconômicos).
O painel “REDD+: instrumento estratégico para aumentar a ambição na conservação das florestas tropicais” iniciou com moderação de Gabriela Savian, diretora-adjunta de Políticas Públicas no IPAM, com Mauro Ó de Almeida, titular da Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Estado do Pará; Fernanda Ferreira, gerente de engajamento da Emergent; e Beto Mesquita, diretor de Florestas e Políticas Públicas do Instituto BVRio.
Desmatamento nos territórios
Entre 2018 e 2021, proporcionalmente à área dos territórios, terras indígenas tiveram alta de 153% em média no desmatamento comparado (1.255 km²) em relação aos três anos anteriores (496 km²). Em 2020, apenas 3% dos territórios indígenas na Amazônia brasileira concentraram 70% do desmatamento e 50% dos incêndios ligados a atividades ilegais de agentes externos. Contextos críticos, mostra estudo do IPAM (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia), estão nos territórios Apiterewa, Menkragnoti, Ituna-Itatá, Trincheira Bacajá, Cachoeira Seca e Kayapó, no Pará, com altas de desmatamento entre 170% e 638% na comparação entre os dois últimos triênios.
Na Amazônia, o aumento do desmatamento está diretamente relacionado à grilagem e à ocupação ilegal de terras públicas. A área registrada irregularmente como propriedade particular dentro de territórios indígenas no bioma no Brasil aumentou 55% entre 2016 e 2020 e o número de CAR (Cadastro Ambiental Rural) cresceu 75% no mesmo período.
Para as populações tradicionais no Cerrado, o principal motivo de conflitos também tem a ver com invasões dentro de seus territórios por atividades externas – ou até mesmo registradas como reservas legais de imóveis rurais. Segundo dados inseridos pelas comunidades no aplicativo Tô no Mapa, 48% dos conflitos enfrentados são por disputas pela terra; 13% por contaminação por agrotóxicos e 12% por queimadas não controladas.
O Cerrado foi o bioma que mais queimou entre janeiro e outubro deste ano, concentrando 48% de toda a área queimada no Brasil, a Amazônia vem na sequência, com 47%. Nos dois biomas, a presença de povos indígenas e comunidades tradicionais é o que ainda freia o avanço das fronteiras de desmatamento.
Ameaças e conflitos no campo
“Recursos que deveriam ser destinados à proteção dos povos tradicionais e de seus territórios têm sido insuficientes ou utilizados em outras funções. Do Fundo de Glasgow, por exemplo, resultado da última COP e criado justamente para os povos indígenas, já foram gastos 19%, mas apenas 7% chegaram de fato aos grupos tradicionais. Estamos presos em um ciclo de saber que os povos indígenas são fundamentais para a preservação, captamos recursos para esses povos, mas não os destinamos de maneira eficaz”, indica Leila Saraiva, conselheira política do INESC (Instituto de Estudos Socioeconômicos).
As atividades de desmatamento e fogo associado, grilagem e garimpo ilegais, traduzem-se também em ameaças às vidas das pessoas que vivem nos territórios. A violência no campo, somente no primeiro semestre de 2022, registrou 759 ocorrências envolvendo mais de 113 mil famílias, segundo relatório da Comissão Pastoral da Terra. Para 2021, a organização calcula um aumento de 75% nos assassinatos em conflitos no campo.
“Temos que ver os povos da floresta como parceiros na luta contra as mudanças climáticas e não como beneficiários”, avalia Susan Gardner, diretora de Ecossistemas do PNUMA (Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente).
Financiamento para além do carbono
O financiamento climático global, por meio de instrumentos como o REDD+, está associado à redução das emissões de gases do efeito estufa por meio da redução do desmatamento condicionada ao pagamento por resultados. Nas discussões desta manhã no Brazil Hub, especialistas indígenas e não indígenas formaram coro pela ampliação dos critérios para a recompensa financeira com foco em populações tradicionais e em políticas complementares.
Estabelecido na Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima de 2013 o REDD+ evoluiu a partir do conceito de REDD (Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal), resultado de uma proposta do IPAM e de parceiros na COP9, em 2003, para a redução compensada de emissões. O REDD+ inclui conservação, manejo sustentável e aumento das reservas florestais de carbono no financiamento internacional a países em desenvolvimento, por resultados na redução de emissões de gases do efeito estufa causadas por desmatamento e degradação, com incentivo à recuperação e à conservação de florestas.
“É interessante pensar na redução do desmatamento por um aspecto mais amplo como resultado de políticas sociais, que não vem só do comando e controle, mas da melhoria da qualidade de vida da população que está ali. Quando a gente fala da Amazônia, estamos falando de 25 milhões de pessoas que vivem nesse bioma. Melhorias em educação, saúde, segurança, estão conectadas com a redução do desmatamento e são fundamentais para serem implementadas”, afirma Fernanda Ferreira, gerente de engajamento da Emergent.
A participação dos estados nesse panorama também foi vista como essencial pelos painelistas, principalmente por conta do distanciamento do diálogo com o governo federal e do desmantelamento de políticas socioambientais nos últimos anos no Brasil. “Por conta da perspectiva desértica que tínhamos no âmbito federal, investir nas relações com governos estaduais passou a ser a alternativa viável e única, ao continuar o distanciamento de discussões coerentes, fora das chantagens”, comentou Beto Mesquita, diretor de Florestas e Políticas Públicas do Instituto BVRio.
Acordo de Paris: por que 1,5°C?
“É preciso reconstruir nosso futuro enquanto humanidade. E faremos isso entendendo que atingir os objetivos nacionais, estabelecidos no Acordo de Paris, passa, sem dúvida, pela preservação da Amazônia e pela colaboração com os povos tradicionais”, complementou Eugênio Pantoja, diretor de Políticas Públicas e Desenvolvimento Territorial do IPAM.
Assinado por 196 países, o Acordo de Paris tem o objetivo em comum de limitar o aumento da temperatura média do planeta em 1,5°C em relação aos níveis pré-industriais. Quase metade das emissões brasileiras (49%) estão ligadas a desmatamento e fogo associado. O Brasil é o 4° que mais emitiu gases do efeito estufa desde 1850.
Eventos climáticos extremos já refletem o superaquecimento global que está em 1,1°C. De acordo com relatório das Nações Unidas, com a falta de progresso e a implementação somente das metas atuais, o planeta está a caminho de uma elevação de até 2,8°C. Um aumento de 2°C teria como consequência global até 14 vezes mais ondas de calor e 70% mais secas, segundo o IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas).
Serviço
A programação do Brazil Climate Action Hub na COP27 pode ser consultada no site do espaço, que fica na Zona Azul da conferência do clima. Todos os eventos são transmitidos ao vivo com tradução simultânea português-inglês e inglês-português. A gravação dos painéis está disponível para assistir aqui e aqui.
O IPAM organiza o Brazil Climate Action Hub junto ao iCS (Instituto Clima e Sociedade) e ao Instituto ClimaInfo. Acompanhe a agenda do IPAM na COP27.
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