Clima

Jornais ajudam a decifrar subida do oceano

Cláudio Ângelo, do OC em Marrakesh – 

Pesquisa em recortes antigos mostra número crescente de relatos de marés altas e ressacas em Santos e Fortaleza nas últimas 3 décadas; dados devem integrar relatório de painel brasileiro do clima

Cientistas brasileiros em busca de informações sobre como o nível do mar variou no país ao longo do último século estão apelando para uma base de dados heterodoxa: na ausência de um registro sistemático de marés e ondas, eles estão usando recortes antigos de jornal.

ressaca-em-santos
Ressaca na cidade de Santos (SP)

E o que estes mostram é uma tendência crescente no número de eventos. Em Santos, no litoral paulista, o número de ressacas por ano cresceu de 1 para 10 entre 1961 e 2015. Em Fortaleza, o número de dias com ressaca subiu de 1 em 1960 para 19 em 2009.

Os dados devem compor o relatório do PBMC (Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas) sobre vulnerabilidade da zona costeira brasileira. O documento será publicado em 2017. Algumas de suas informações preliminares foram apresentadas durante a COP22, em Marrakesh, pelo climatologista José Marengo, do Cemaden (Centro de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais).

As séries de dados foram montadas por uma aluna de Marengo. Elas mostram que Fortaleza tem uma tendência ao aumento no número de dias com ressaca muito marcada após 1983, enquanto Santos tem picos de ocorrência em ressacas e marés altas (quando os ventos empurram mais água no sentido da costa, elevando o nível do mar) a partir do final da década de 1970 e depois, de forma muito marcada, do ano 2000 em diante.

“Estou pensando em incluí-los, mas com todos os senões”, disse Marengo ao OC. O principal deles, claro, é que não se trata de dados exatamente científicos. Buscar informações da imprensa sobre os eventos extremos, prossegue Marengo, diz mais sobre a percepção da população do que sobre a frequência desses eventos.

fortaleza
Força do mar em Fortaleza

Por exemplo, em 1928, quando começa o registro de Santos nas hemerotecas, não havia tanto patrimônio à beira-mar que pudesse ser danificado e virar notícia. O quadro para o final do século passado e o começo deste é completamente distinto.

De qualquer maneira, há tempos a ciência se serve de registros históricos informais para ajudar a compor uma imagem de como o clima variou no passado. Essas informações vão desde anotações de temperatura do mar feitas por navegadores até registros feitos por padres na Europa no século 18 sobre calor, frio ou precipitação.

Foi graças a registros desse tipo que a grande seca que afetou o Brasil e outras partes do mundo entre 1877 e 1879 foi caracterizada. Hoje sabe-se, devido à coincidência entre os relatos, que essa seca provavelmente foi causada por um forte El Niño. Ela está na origem dos movimentos messiânicos do Nordeste do final do século 19 que culminaram na Guerra de Canudos (1896-1897).

No caso da elevação do nível do mar, um risco importante para o Brasil – que tem 25% da população vivendo no litoral – recorrer a hemerotecas e outros tipos de relato informal pode ajudar a preencher lacunas grandes. “Tivemos muita dificuldade para conseguir informação”, disse Marengo. “O registro é tão incompleto que não dá para montar um quadro.”

O país não dispõe de uma rede de marégrafos (instrumentos para medir a variação das marés) ou de ondógrafos (que medem a altura das ondas) com um registro amplo. As informações históricas que existem são pontuais e para poucas cidades. E elas têm relevância crescente para o planejamento urbano: Marengo e colegas estimaram que, em 2050, uma elevação do nível do mar de 23 cm em Santos causaria prejuízos de R$ 380 milhões só em valor de imóveis na Ponta da Praia, parte nobre da cidade.

O engenheiro Vítor Zanetti, do ITA (Instituto Tecnológico de Aeronáutica), estimou em R$ 100 bilhões o patrimônio em zonas de alta vulnerabilidade a ressacas e alagamentos em Santos em 2040, caso o cenário de emissões mais altas de gases-estufa projetado pelo IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática) se concretize. No Rio, esses valores chegam a R$ 124 bilhões, segundo cálculos de Zanetti para o estudo Brasil 2040, encomendado pela extinta Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República.

A forte ressaca que atingiu toda a região Sudeste no final de outubro, essencialmente eliminando as praias da Zona Sul do Rio e enchendo de areia a Avenida Atlântica, expôs esse risco.

Em Santos, onde moradores, prefeitura e cientistas já vêm discutindo medidas de adaptação – 60% da parte insular da cidade está a até 5 metros do nível do mar –, o episódio demonstrou à população que o impacto da mudança climática é muito mais do que gráficos em relatórios científicos. “Um síndico de um prédio disse em uma das audiências que tivemos que não construiria muros na frente do edifício, porque iria estragar a fachada. Uma semana depois, o prédio dele alagou”, conta o pesquisador do Cemaden.

Em Fortaleza, segundo Marengo, a urbanização é a maior determinante do aumento da vulnerabilidade da costa. Em 2004, uma ressaca afetou 72 mil pessoas na cidade.

Além da vulnerabilidade direta a inundações, a elevação do nível do mar traz outros riscos às cidades costeiras brasileiras. Um deles é a redução da disponibilidade de água potável devido à intrusão marinha nos aquíferos.

“As cidades costeiras já estão expostas a ressacas, erosão costeira e intrusão de água salgada. A mudança climática e a elevação do nível do mar vão provavelmente exacerbar esses riscos”, afirmam os pesquisadores do PBMC. (Observatório do Clima/#Envolverde)

Publicado originalmente no site do Observatório do Clima