Mesmo que se consiga substituir os combustíveis fósseis por fontes renováveis, será praticamente impossível zerar as emissões de carbono até 2050 sem proteger o sistema natural de estocagem de CO2 das florestas tropicais, principalmente a Amazônia, pois são elas que detêm o maior estoque de CO2 do planeta. O alerta foi feito pelo cientista Paulo Artaxo, professor do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (IF-USP) e autor-líder de um capítulo do mais recente relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), na última quinta-feira (27/10), em uma palestra na conferência anual do Centro de Pesquisa para Inovação em Gases de Efeito Estufa (RCGI).
Artaxo é um dos mais influentes pesquisadores do mundo na área de meio ambiente e mudanças climáticas, e está a caminho do Egito, onde participará da 27ª Conferência da Organização das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, a COP 27.
Segundo ele, vários estudos, de diferentes laboratórios do mundo, com estratégicas científicas distintas, apontam que as mudanças climáticas em curso que já estão próximas de um ponto sem volta, e que o desmatamento e a degeneração das florestas são alguns dos seus principais motores. “Daqui 10, 15 anos, as mudanças que se se instalarem é que determinarão como será o clima nos próximos séculos”, disse. E as conclusões dos estudos científicos mais recentes, apresentados por ele, não são boas.
A questão climática, segundo Artaxo, é complexa e seus fatores estão extremamente conectados uns com os outros. “Dois meses atrás, foi publicado um estudo mostrando que o que se faz aqui, na Amazônia, afeta criticamente a precipitação no Himalaia, que provê água para um 1,6 bilhão de pessoas. Portanto, isso mostra que a atmosfera é uma entidade única e tudo está conectado”, afirmou.
Na Amazônia, ponto de inflexão é a capacidade da floresta de se sustentar por si própria. O processo de transição, levado pelo desmatamento, mudança do clima, já alterou vários aspectos do seu ecossistema. Um deles é a fotossíntese, processo realizado pelas plantas para a produção de energia, no qual a captura de CO2 é essencial. “Sob o estresse de temperaturas mais elevadas, a quantidade de gás carbônico assimilada pela fotossíntese da floresta está diminuindo drasticamente”, disse.
O que está sendo observado em vários estudos, segundo Artaxo, é que o fluxo líquido de carbono da Amazônia está diminuindo. “Quando eu comecei os estudos na região, 30, 35 anos atrás, a Amazônia estava absorvendo 1.5 toneladas de carbono. Agora, esse fluxo é praticamente zero. É zero por causa, principalmente, da morte das árvores que está aumentando. E está aumentando por quê? Por causa do crescimento dos extremos do clima, do aumento da temperatura e da menor precipitação de chuvas.”
Enquanto na Sibéria, exemplifica ele, o sistema de captura e remoção de CO2 na atmosfera é muito dinâmico, com diferenças no inverno e no verão, na Amazônia e na floresta tropical da África o reservatório de CO2 é permanente. Ou seja, uma vez dispersado, o CO2 ficará permanentemente na atmosfera.
A temperatura do planeta tende a aumentar entre 3.3 graus Celsius e 4 graus Celsius, e o IPPC estima uma média 4 graus Celsius. “Mas a média da temperatura não diz nada, pois ninguém vive numa temperatura média. No Brasil, uma média de temperatura como essa significa que teremos temperaturas aumentadas em 6.6 graus. No Ártico, na Sibéria, na tundra canadense a elevação poderá ser e até 7 graus. Isso é um aumento imenso”, destacou.
Processo de desertificação — Outra mudança importante é sobre a precipitação de chuvas. “Muitas áreas do nosso planeta já estão começando a ficar muito mais secas, e uma delas é a área central do Brasil e a parte oriental da Amazônia, onde há decréscimo muito significativo da precipitação. Já a área mediterrânea da Europa (sul da Espanha, Portugal e Itália) está em processo acelerado de desertificação, assim como na América Central e na parte central dos EUA. “Isso traz um ingrediente crítico para a produção de alimentos. E não se trata de uma previsão para o futuro. Isso já está acontecendo.”
Ele destaca que o sistema de produção de alimentos é responsável por 32% das emissões globais de CO2, e nas próximas décadas as emissões estimadas desse setor indicam um aumento de 50%. “Como o planeta será capaz de produzir comida para 10 bilhões de pessoas e ao mesmo tempo alcançar o net-zero. Parando de comer? Então, basicamente, essa situação é muito mais do que uma questão de sistema de energia, estamos falando da necessidade de uma sociedade sustentável.”
‘Savanização’ da Amazônia — Segundo Artaxo, na Amazônia o desmatamento é cerca de 13.500 quilômetros quadrados por ano [dados de 2021]. E esse número tende a ser 27% maior em 2022. Essa mudança no ecossistema é crítica. “Um ponto de inflexão seria uma mudança de um ecossistema florestal para um tipo de savana, com 10% do carbono original estocado”, disse ele. Como nessa trajetória vários fatores têm influência, a pergunta que fica é: “Essa transição entre os ecossistemas será suave, abrupta, e será reversível? São questões críticas e nós ainda não temos uma resposta clara.”
A ciência, segundo ele, já tem alguma noção sobre a questão da reversibilidade. Áreas desmatadas na Amazônia há 40, 50 anos e que foram abandonadas voltaram a se regenerar, mas somente com 55% a 60% da biomassa original e com um terço da biodiversidade anterior.
Uma pesquisa do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM) correlaciona o nível de precipitação, de árido para úmido, com a biomassa da Amazônia, da floresta da África e do sudeste da Asia. “As três florestas são surpreendentemente muitos diferentes, mas elas têm um padrão. Onde tem mais chuva, tem mais biomassa.”
Outro aspecto é que, entre as três florestas, a Amazônia é a que mais libera carbono pela perda da vegetação. “Estamos falando de cerca de 5,1% de carbono de um total de 120 bilhões de toneladas de carbono estocado.”
Ele lembra que a perda de carbono não está relacionada apenas às áreas desmatadas, pois as áreas próximas ao desmatamento são responsáveis por 36% das emissões de carbono na Amazônia.
Risco extremo — Segundo Artaxo, a maior parte da área da Amazônia está se tornando mais inflamável. Isso é expresso pelo déficit de pressão de vapor, que é a quantidade de água que as plantas soltam na atmosfera. “Também estamos observando mudanças significativas no ciclo hidrológico da Amazônia, com um crescimento na quantidade de quantidade de água nos rios da Amazônia nos últimos 120 anos. E se está crescendo, isso significa que menos água está sendo reprocessada pelo ecossistema.”
Outra mudança é no sistema de precipitação em cascata, que é, em síntese, quando a água vaporizada do oceano atlântico vai para a Amazônia e de lá para o restante do país, levando as chuvas necessárias às plantações. “Um estudo mostra que estaríamos próximos do ponto de inflexão se a precipitação for maior de 1 mil mililitros e se a temperatura for maior que 2.5 graus”, disse. “Outro estudo, de Carlos Nobre, traz uma estimativa que se houver um aumento de temperatura de 4 graus ou se houver um desmatamento de 40% do total das áreas de floresta, todas as áreas florestais remanescentes serão perdidas. E nós estamos no meio do caminho dessa previsão.”
Para Artaxo, o Brasil tem uma tremenda oportunidade, protegendo o estoque natural de carbono, de reduzir em 44% as emissões de carbono em cinco anos. É importante lembrar que, embora historicamente EUA e China sejam grandes emissores de CO2, o Brasil não está muito longe. Em 2021, o país foi o sétimo maior emissor em termos globais, o quarto em emissões per capita, e o sexto em emissões históricas. Apesar disso, na revisão dos acordos de meta de redução de emissões do ano passado, o Brasil foi o único país que aumentou as emissões permitidas.
“Nós temos um grande programa de biocombustível, que nenhum outro país tem; um grande potencial para absorver carbono, mas ao mesmo tempo várias vulnerabilidades, com um setor agrícola muito sensível ao clima, uma geração de energia por hidrelétricas, que depende da chuva, e 8,5 mil quilômetros de área de costa vulneráveis ao aumento do nível do mar.
Para analisar o presente e o futuro, é essencial olhar para o passado, disse Artaxo. Uma séria histórica mostra que ao logo de 500 milhões de anos o clima da terra oscilou muito, para mais quente ou mais frio, com períodos glaciais e interglaciais. “Nos últimos 10 milhões de anos, a terra permanece no período interglacial quente, que é onde estamos agora, e isso permitiu que a civilização humana prosperasse. Toda a vida na terra apareceu nos últimos 4 milhões de anos. E toda a vez que ocorreram extinções de espécies associadas ao clima, e isso ocorreu várias vezes, foram necessários milhões de anos para o ecossistema se recuperar. Então, qualquer dano, é muito difícil de ser recuperado, e isso deveria ser uma lição para nós”, destacou.
Segundo ele, análises dos últimos 800 mil anos mostram que a oscilação entre os períodos glaciais e interglaciais estão conectadas com os gases de efeito estufa e a temperatura global. O problema é que esse ciclo de oscilação está sendo rompido agora. “Nos últimos 60, 70 anos, a terra saiu deste ciclo, que vinha ocorrendo há 800 mil anos. Então, estamos trazendo a terra para fora desse sistema climático dinâmico, e não sabemos para onde estamos indo”, disse.
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Sobre o RCGI — O Centro de Pesquisa para Inovação em Gases de Efeito Estufa (RCGI) é um Centro de Pesquisa em Engenharia, criado em 2015, com financiamento da FAPESP e da Shell. As pesquisas do RCGI são focadas em inovações que possibilitem ao Brasil atingir os compromissos assumidos no Acordo de Paris, no âmbito das NDCs — Nationally Determined Contributions. Os projetos de pesquisa — 19, no total — estão ancorados em cinco programas: NBS (Nature Based Solutions); CCU (Carbon Capture and Utilization); BECCS (Bioenergy with Carbon Capture and Storage); GHG (Greenhouse Gases) e Advocacy. Atualmente, o centro conta com cerca de 400 pesquisadores. Saiba mais aqui.
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