Por Amazônia Real –
O comércio do ouro prosperou tanto em Roraima que foram abertas sete novas fábricas de joalheria e ourivesaria para cada 100 mil habitantes nos últimos quatro anos. Foram 44 novas fábricas criadas no estado desde 2019. Em São Paulo, o estado mais populoso do Brasil e de renda per capita 75% maior, foi aberta uma única empresa do gênero para cada 300 mil paulistas no mesmo período. A população de Roraima é de 643.805, segundo prévia do Censo do IBGE de 2022.
A atividade de compra e venda de joias também explodiu. Em 2019, foram abertas 200 lojas, grande parte na capital Boa Vista. Em 2020, foram 297; em 2021, 398; e em 2022, 376. Ou seja, nos últimos quatro anos, foram criados 1.315 novos negócios (incluindo fábricas e comércio varejista), a maioria esquentando ouro extraído ilegalmente das terras indígenas.
Já não há mais uma “rua do Ouro” em Boa Vista, mas várias delas. Nos últimos anos, elas se espalharam para outros pontos comerciais além da região do entorno do monumento aos garimpeiros na Praça do Centro Cívico. A venda do metal precioso se expande velozmente para a zona oeste. Na avenida do comércio para os bairros periféricos, curiosamente chamada de General Ataíde Teive, há dezenas de joalherias. Em alguns pontos, desta que é a maior via de Boa Vista (11,29 quilômetros de extensão), as lojas ficam coladas umas nas outras. No centro, são 38 comércios do ouro.
Os dados foram obtidos pela Amazônia Real em consulta à Junta Comercial do Estado de Roraima. Eles mostram que o número de empresas voltadas para o comércio do ouro nos últimos quatro anos, período em que Jair Bolsonaro (PL) era presidente do Brasil e Antonio Denarium (PP), seu fiel escudeiro como governador em primeiro mandato, expandiu.
Foi nesse período que o garimpeiro Francisco Oliveira, de 43 anos, decidiu montar a própria joalheria e ourivesaria na avenida Ataíde Teive, no bairro Alvorada, zona oeste de Boa Vista. De fora, a loja tem uma estrutura que chama a atenção pela ostentação. Na fachada, é exibida a foto de uma modelo que tampa a boca com os dedos cheios de joias. Nos textos da Joalheria Imperial, são informados os tipos de peças fabricadas e que se compra e vende ouro.
A porta da Joalheria Imperial fica sempre fechada na chave. Para entrar é necessário apertar a campainha. Um jovem, que faz o papel de segurança, abre o local e pede para esperar em um sofá. Por dentro, o cheiro de produtos químicos incomoda. Na vitrine ao lado, ficam expostas joias, algumas sem preço, contendo apenas um número de referência. O rapaz que abriu as portas, discreto e sem uniforme, entra para o escritório onde acompanha o patrão enquanto ele negocia com outros homens que já estavam no local.
Na sala de Francisco Oliveira, é possível observar tudo que acontece dentro e fora da loja por meio de câmeras de segurança. A três passos da mesa onde ele normalmente despacha com os garimpeiros, há uma fornalha com materiais, equipamentos e produtos para desmanche e fabricação de joias.
Para o nordestino do Maranhão, não há ilegalidade na sua atividade comercial. Oliveira culpa o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e demonstra preocupação com o negócio. Devido às operações da Polícia Federal (PF), afirma que o movimento caiu cerca de 20%. A Joalheria Imperial movimenta cerca de 50 mil reais brutos por mês. “Agora que começou né [as operações]. Aí eu acho que vai começar mesmo a crise daqui uns 15 dias, talvez”, disse o comerciante, complementando que vai faltar ouro e o produto, ficar mais caro. “Tem que reunir todo mundo e buscar uma saída”, concluiu. Francisco Oliveira não demonstrou preocupação com os Yanomami. Para ele, o atual “governo faz só politicagem” com a situação indígena.
Ouro do sangue Yanomami
Lanchas tipo voadeiras usadas por garimpeiros sendo transportadas na Rua do Ouro em Boa Vista (Foto: Felipe Medeiros/Amazônia Real)
Nas outras ruas e avenidas do ouro, aumenta a sensação de carência do minério a cada dia que passa desde que foi deflagrada a operação federal na TIY. Na quarta-feira (15), um homem estacionou o carro em frente às joelheiras e ourives localizadas no Centro de Boa Vista. Foi difícil achar uma vaga para o veículo que guinchava uma embarcação maior que o veículo, com motor de potência 25 HPs.
A reportagem acompanhou esse homem que desceu do veículo e foi a uma das lojas. Ele tentava vender uma pepita de ouro e agiu de forma discreta. Segurava a pedra sem deixar que outros clientes e funcionários pudessem ver o que tinha em suas mãos, mostrava aos donos e rapidamente a escondia com os dedos.
Os empresários do ouro de sangue Yanomami, como já denunciado na série publicada pela Amazônia Real em parceria com a Repórter Brasil, transitam livremente entre as lojas fechando negócios com outros homens e mulheres. Nas portas, ficam funcionários convidando potenciais vendedores de ouro in natura. “Quer vender ouro? Eu compro ouro. Tem pra vender aí?”, perguntou um deles.
O momento atual parece ser o de evitar o prejuízo, e a ação mais visível nos últimos dias tem sido a dos donos de joalherias. São eles que praticamente fixam o preço do ouro no comércio local. Na última quarta-feira (15), o grama do metal precioso custava cerca de 310 reais, mas nas ruas do ouro do Centro ofereciam a 175 reais para os vendedores.
O valor do ouro, 310 reais o grama, atrai diversas camadas da sociedade de Roraima. São empresários, políticos, fazendeiros, traficantes e servidores públicos que mantêm uma mão de obra de trabalhadores explorados, os garimpeiros.
Existem lojas e ruas do ouro em abundância em Boa Vista, porque eles são apenas uma das pontas de uma cadeia que envolve um esquema onde quem mais lucra são empresas com faturamentos milionários e sede em bairros nobres da capital paulista. Para que tudo funcione corretamente, o bilionário negócio do ouro no Brasil inclui as chamadas DTVMs (Distribuidora de Títulos e Valores Mobiliários), empresas do sistema financeiro autorizadas a comprar o metal no Brasil e são pouco fiscalizadas. Esse é um dos motivos que fazem com que, entre 2019 e 2020, mais de 4 toneladas de ouro ilegal de várias terras indígenas da Amazônia, segundo o Ministério Público Federal (MPF).
Comércio escancarado
Comércio ligado ao garimpo na Avenida Ataíde Teive, zona oeste de Boa Vista (Foto: Felipe Medeiros/Amazônia Real)
O comércio do ouro extraído ilegalmente da Terra Indígena Yanomami (TIY) ocorre de forma escancarada em Roraima. Em Boa Vista, é visível a expansão de empresas que vendem os chamados “carotes”. Os objetos são utilizados para transporte de combustíveis, oficinas de embarcações, manutenção e venda de motores de barcos, distribuidoras de bebidas e alimentos, lojas de materiais de construção com itens usados no garimpo expostos nas calçadas, além das joalherias e ourivesarias.
“Existe um discurso que naturaliza a atividade do garimpo, criada desde a época da ocupação e desenvolvimento da região Norte com os governos militares. Na verdade, a atividade de garimpo em Roraima se inicia na década de 1930. E esse discurso de que o garimpo é a cultura local, porque tem monumentos que simbolizam garimpo, é [vista] como uma coisa natural”, explicou o antropólogo Lauro Prestes, especializado em educação indígena e que já esteve à frente de formação de agentes de saúde que atuam na Terra Indígena Yanomami. Mas ele alerta: nunca foi natural, mas uma construção intencional para forjar uma nova realidade. “Um discurso como esse não se mantém por muito tempo se ele não for rentável, se ele não beneficiar um grupo. E no caso do problema do garimpo em Roraima está muito ligado a questões políticas.”
Em Boa Vista, impera a lei do silêncio. Até mesmo a PF jamais prendeu um político ou empresário do estado. Esta semana a Justiça Federal negou pela sexta vez, a prisão do empresário Rodrigo Martins de Mello, vulgo Rodrigo Cataratas, de 46 anos. Ele é investigado por dar apoio à exploração ilegal de ouro na TIY. Na tentativa de abrir ainda mais as portas do garimpo ilegal, ele se candidatou ao cargo de deputado federal nas últimas eleições e, segundo fontes ouvidas pela reportagem, ele tem uma relação próxima com Disney Mesquita, ex-secretário da Casa Civil no primeiro mandato de Denarium, de quem também ele é amigo.
Políticos pró-garimpo
Antônio Denarium chega à Basse Aérea de Boa Vista para reunião com os representantes garimpeiros e da FAB (Foto: Felipe Medeiros/Amazônia Real)
“Essa cultura garimpeira e essa valorização da cultura do Eldorado estão muito ligadas à forma como a classe política roraimense se utiliza do garimpo para perpetuar os seus privilégios. A grande questão é quando se vai fazer uma análise do garimpo, porque outras atividades rentáveis que preservam o meio ambiente, como o turismo, não estão no discurso político. Quando se fala de desenvolvimento do estado, o que se levanta é a bandeira do garimpo”, criticou Prestes.
Horas antes da operação da PF que mirava na irmã do governador e o sobrinho dele, ambos investigados, Denarium se reuniu às escondidas com garimpeiros. Foi na sexta-feira (10), e a Amazônia Real foi a única equipe jornalística que soube do encontro e divulgou com exclusividade. Denarium nunca negou sua relação com a classe de garimpeiros e mineradores.
Na sexta-feira (17), a Hutukara Associação Yanomami (HAY) e a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) vieram a público condenar a escolha do senador Chico Rodrigues (PSB) como presidente da Comissão Temporária externa criada para acompanhar a situação na TIY. Não se sabe se por provocação, conivência, espírito de corpo ou ignorância, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD), aceitou a indicação de Chico Rodrigues, e ainda incluiu os colegas Hiran Gonçalves (PP) e o senador Mecias de Jesus (Republicanos). Eles e Denarium formam a tropa de choque pró-garimpo.
Chico Rodrigues era o dono do avião que circulava no garimpo ilegal da TIY e em 2020 foi flagrado pela PF com 33 mil reais na cueca. Na visão dele, em entrevista à Globonews, o povo Yanomami é “a “última etnia do planeta no século 21 que ainda é primitiva, totalmente primitiva”. Já Mecias de Jesus se tornou peça-chave do bolsonarismo em Roraima: partiu dele as indicações para a coordenador do Distrito Sanitário Especial Indígena, que deveria cuidar da saúde dos Yanomami e Ye’kuana.
O garimpo é tão comum para a população roraimense que, faltando apenas um dia para o início da megaoperação para começar a pôr fim à exploração ilegal, o comércio do ouro não parou em Boa Vista. Estiveram na cidade no dia 8 de fevereiro, o ministro da Defesa, José Múcio Monteiro, e os três comandantes das Forças Armadas: general Tomás de Paiva (Exército); brigadeiro Marcelo Damasceno (Aeronáutica); e o almirante Marcos Sampaio Olsen (Marinha). As “ruas do ouro” funcionaram normalmente durante toda a estadia da comitiva interministerial em Roraima.
“Vão fechar o garimpo?”
Nos últimos dias, a Amazônia Real tem visitado joalherias em Boa Vista. Elas possuem um forte esquema de proteção, com um, ou até dois, homens disfarçados e sistema de monitoramento por câmeras. Em uma das lojas, uma atendente informou que eles recebem muitas encomendas diariamente e algumas vezes ficam sem o ouro. Quando isso acontece, precisam aguardar que os garimpeiros tragam a matéria-prima para a fabricação das jóias, o que, segundo ela, não demora mais que cinco dias para ser restabelecido o comércio do ouro.
Um empresário do ramo de bebidas, na zona oeste de Boa Vista, diz estar preocupado com o fim do garimpo, que girava a economia local. “Será que vão fechar o garimpo? Eu vendo muito aqui para os garimpeiros, tem semanas que eu vendo 200, 300 mil”, disse.
O antropólogo Lauro Prestes propõe uma autoanálise: “Até que ponto “nós [sociedade que vive em Roraima] estamos com as mãos sujas do sangue Yanomami? Dizer que o indígena é um entrave da sociedade roraimense, que o indígena atrapalha o desenvolvimento do estado, é um discurso que possibilita e evidencia essa situação que vivenciamos com a crise humanitária dos Yanomami”, analisou.
As lideranças indígenas já haviam se manifestado antes mesmo da visita do presidente Lula (PT) a Roraima. O que houve segundo a HAY foi uma estratégia do governo Bolsonaro para enfraquecer a saúde dos indígenas, desmantelando a rede de saúde pública e a fiscalização, facilitando e estimulando o ingresso de não-indígenas nos territórios, levando mais doenças para dentro das aldeias.
“O governo passado [do Bolsonaro] sequer nos atendeu em Brasília. Então, essa é uma situação que está acontecendo e nós já avisamos há muito tempo. Nós fizemos o nosso trabalho de documentar, fizemos relatório, as mortes estavam crescendo em 2019”, disse Dário Kopenawa, vice-presidente da HAY, que estava presente com seu pai Davi Kopenawa, em uma entrevista exclusiva para Amazônia Real em janeiro.
Nos diálogos travados com os responsáveis pelos atendimentos e os próprios donos das lojas do comércio do ouro, o repórter da Amazônia Real, que nem sempre se identificou como jornalista, não ouviu em momento algum uma frase de solidariedade ao drama enfrentado pelos Yanomami.
Dário Yanomami, vice-presidente da Associação Hutukara (Foto: Felipe Medeiros/Amazônia Real)
Crédito da imagem destacada: Nos últimos quatro anos, Roraima registrou a abertura de 44 fábricas de artefatos de joalheria e ourivesarias e acumulou mais de 1.200 negócios de compra e venda do metal precioso, boa parte extraído da TI Yanomami (Foto: Pixabay).
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