Entre 2007 e 2021, estado autorizou supressão de 992.587 hectares de vegetação nativa; número equivale a 32 cidades de Salvador. Oeste baiano corresponde a 80% das autorizações de desmate
Autorizações de desmatamento têm sido expedidas pelo órgão ambiental da Bahia mesmo que solicitantes não cumpram requisitos legais, é o que aponta estudo divulgado por organizações da sociedade civil nesta quarta-feira (4/8). O Instituto Mãos da Terra (IMATERRA), em parceria com a Universidade Federal da Bahia (UFBA), analisou uma amostragem de dezesseis processos administrativos do Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (INEMA), em que constam Autorizações de Supressão de Vegetação nativa (ASVs). Em todos os processos, há irregularidades que atentam contra a lei. A análise contou com apoio do WWF-Brasil e do Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN), e é resultado da iniciativa Tamo de Olho, realizada por meio do projeto CERES com financiamento da União Europeia.
Entre setembro de 2007 e junho de 2021, o governo estadual concedeu 5.126 autorizações para supressão de vegetação em todos os biomas, que totalizam uma área de 992.587 hectares. As Bacias do Rio Corrente e Rio Grande correspondem a 80% da área total autorizada pelo estado no período (798.428 hectares). A região de Cerrado, no oeste baiano, abastece o Rio São Francisco. O resultado do estudo, divulgado durante seminário realizado na Câmara de Vereadores de Barreiras (BA), lista uma série de irregularidades, incluindo conflitos com comunidades tradicionais, uso de técnicas para captura de fauna que podem ser fatais e pareceres assinados por servidores sem qualificação técnica, entre outras falhas.
“A expansão do agronegócio na região oeste da Bahia ocorreu, em grande parte, em territórios considerados tradicionais, mas que ainda não estavam assegurados pelo Estado, gerando grandes conflitos sociais na região, que persistem nos tempos atuais. Destaca-se que muitas destas terras são devolutas e alguns empreendimentos de agronegócio estão associados à grilagem para ocupação de terras na região”, diz o documento. Os desmatamentos autorizados beneficiam principalmente o cultivo de soja, milho, eucalipto e algodão. Veja sumário executivo do estudo aqui.
Segundo o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM), com dados do Instituto Nacional de Pesquisa Espacial (INPE), de 2020 a 2021, o desmatamento no Cerrado bateu recorde, com mais de 8 mil km² derrubados. Desse desmatamento, 61% se deram sobre a vegetação nativa do MATOPIBA, área de avanço desenfreado da fronteira agrícola que abrange os estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia.
Irregularidades encontradas
“Durante a análise dos processos, foram identificadas muitas irregularidades e inconformidades que afetam diretamente a biodiversidade e seus serviços ecossistêmicos, e as comunidades tradicionais que habitam a região de estudo, tornando as concessões de ASVs analisadas legalmente questionáveis”, aponta o estudo.
A fazenda que mais desmatou foi o Condomínio Delfin, localizado em Formosa do Rio Preto, com derrubada irregular de 24.732 hectares de Cerrado nativo, uma área maior do que a cidade de Recife. Em segundo lugar está Santa Colomba, no município de Cocos, com desmatamento de 4.986,61 hectares. Em terceiro lugar consta Formosinha, com 3.321,23 hectares, também em Formosa do Rio Preto. No caso desta última, a análise constata que não houve apresentação de justificativa para a solicitação de desmatamento; mesmo assim, o INEMA autorizou a derrubada da vegetação.
Referente ao Condomínio Delfin, o campeão de desmatamento que integra o mega-complexo de fazendas Estrondo, a lista de irregularidades é extensa. A análise aponta que a autorização foi concedida sem aprovação da Reserva Legal e que os estudos não apresentaram informações adequadas sobre os impactos socioambientais, como o comprometimento dos recursos hídricos e do equilíbrio climático. Além disso, a autorização se baseou em estudos desatualizados, realizados seis anos antes, com estudos de fauna e flora incompletos. Como técnica para “afugentamento” de animais, o INEMA sugere uso de ratoeiras comuns, que podem ser fatais. Na região, há ainda registros de violência contra cinco comunidades tradicionais locais de geraizeiros, que ocupam a região há gerações.
A fazenda Santa Colomba, segunda maior desmatadora, e localizada na bacia do Rio Cariranha, foi incluída como uma exceção ao escopo da análise por estar próxima ao Rio Corrente e por acumular conflitos socioambientais na região. O estudo identificou a existência de áreas degradadas no interior da propriedade que impossibilitaria a concessão da autorização de desmatamento, segundo as determinações do Código Florestal. O Inventário Florestal, por sua vez, indica presença de uma espécie inexistente no Banco de Dados Nacional. O desmatamento da unidade também causa prejuízos aos modos de vida de comunidades geraizeiras locais.
Em termos gerais, as autorizações de desmatamento não consideram estudos de fauna e ocultam espécies protegidas dos inventários de flora; concordam com uso de cães de caça para capturar animais, técnica não recomendada; são baseadas em relatórios assinados por servidores com claro desconhecimento técnico (que confundem espécies de fauna e flora, por exemplo) e, principalmente, não consideram as comunidades tradicionais locais.
Bacias hidrográficas escolhidas
Em consulta à base de dados do Diário Oficial do Estado da Bahia, com recorte temporal entre 2007 e 2021, foram identificadas 5.126 portarias de autorizações para supressão nativa em todos os biomas do estado. Deste total, 706 autorizações foram dadas para a região da Bacia Hidrográfica do Rio Grande e 345 foram dadas para a Bacia do Rio Corrente, totalizando 1.051 autorizações de desmatamento no Cerrado baiano e concentrando, em termos de área, 80% de todo o desmatamento autorizado no período.
Para a realização do estudo, foram consideradas autorizações emitidas após a publicação do Decreto Estadual nº 15.180/2014, das quais foi selecionada uma amostra de 16 processos que subsidiaram a emissão de Autorizações de Supressão de Vegetação nas Bacias dos Rios Grande e Corrente pelo INEMA, que somados correspondem a um desmate total de 50.723,99 hectares. O número equivale a 1,2 cidade de Belo Horizonte.
A Bacia do Rio Corrente abrange dezenove municípios, entre eles Bom Jesus da Lapa, Correntina e São Desidério. A bacia compreende uma área de 34.875 km², com uma população estimada em 365.832 pessoas. Já a Bacia do Rio Grande inclui doze municípios com uma área total de 76.630 km² e população estimada em 241.553 pessoas. Estão inseridas na Bacia os municípios de Barreiras, Formosa do Rio Preto e Luís Eduardo Magalhães. Alguns municípios compartilham localidade nas duas Bacias.
Foram selecionados processos que envolvessem autorizações dentro ou próximas de Unidades de Conservação de Uso Sustentável ou Unidades de Conservação de Proteção Integral. Também foram consideradas autorizações dadas dentro de áreas de alta prioridade para biodiversidade, áreas prioritárias para proteção dos recursos hídricos, dentro ou próximas a territórios de povos e comunidades tradicionais. Os processos foram analisados de acordo com 21 critérios elencados no relatório.
Impactos
O desmatamento do Cerrado nativo na região do oeste baiano causa impactos que afetam a segurança alimentar de populações, recursos hídricos para o Nordeste brasileiro e o equilíbrio climático global, além de diminuir a biodiversidade da savana mais rica em fauna e flora do mundo. Segundo maior bioma do Brasil, o Cerrado serve de moradia, alimentação e geração de renda para milhares de comunidades tradicionais do país, muitas invisibilizadas nos mapas oficiais.
No bioma, vivem mais de 80 etnias indígenas, além de quilombolas, geraizeiros, vazanteiros, quebradeiras de coco, ribeirinhos, pescadores artesanais, fundos e fechos de pasto, entre outros, que têm seus modos de vida diretamente relacionados com a biodiversidade local. De acordo com a iniciativa Tô no Mapa, existem mais de 3,5 vezes mais comunidades tradicionais na região do MATOPIBA do que mostram os dados somados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), da Fundação Palmares e da Fundação Nacional do Índio (Funai). Conhecido como berço das águas do Brasil, o Cerrado abriga os aquíferos Guarani, Bambuí e Urucuia, além de nascentes de oito das doze principais regiões hidrográficas do Brasil.
O Cerrado ainda é tema de segurança global, sendo central para os debates sobre mitigação das mudanças climáticas. Com raízes que ultrapassam 10 metros de profundidade, representando até 75% da biomassa de arbustos e árvores, o Cerrado consegue estocar cerca de 13,7 bilhões de toneladas de Carbono.
Tamo de Olho
A divulgação é resultado do Projeto “Gestão Integrada de Paisagem Sustentável no Bioma Cerrado — Desvendando a Supressão de Vegetação Nativa nas Bacias dos Rios Grande e Corrente”. O projeto insere-se no âmbito da iniciativa Tamo de Olho, que tem por objetivo identificar casos emblemáticos de desmatamento e de violações de direitos territoriais de Povos e Comunidades Tradicionais para a incidência junto aos órgãos públicos, com foco na responsabilização e na garantia de direitos. Participam da iniciativa o WWF-Brasil, o ISPN, a Rede Cerrado, o Instituto Cerrados e o IPAM.
*Crédito da imagem destacada: Fronteira agrícola em Correntina, Bahia / CRÉDITO Marcio Sanches – WWF-Brasil
#Envolverde