por Nádia Pontes, Deutsche Welle –
Apesar de serem mais de 2 mil, muitas das áreas protegidas do país estão em estado precário de manutenção e gestão, afirma promotora, manifestando preocupação com desestruturação de órgãos de fiscalização ambiental.
Das mais de 2 mil unidades de conservação espalhadas pelo mapa do Brasil, muitas lidam com sistema precário de proteção, falta de profissionais capacitados e de recursos. É o que aponta a promotora de Justiça Cristina Seixas Graça, presidente da Associação Brasileira dos Membros do Ministério Público de Meio Ambiente (Abrampa), destacando que a proteção não é tão grande quanto parece.
Em entrevista à DW Brasil, Graça fala sobre o papel do Ministério Público (MP) diante de retrocessos das leis ambientais no governo de Jair Bolsonaro, como desmantelamento dos órgãos de fiscalização e tentativa de reduzir unidades de proteção.
Segundo a promotora, o sistema jurídico precisa se aperfeiçoar e conhecer mais profundamente as questões ambientais para tomar decisões mais acertadas nos tribunais. “A Constituição brasileira faz ativismo ambiental. Nós apenas, como defensores dessa sociedade, temos o papel de implementar isso”, afirma.
Em todo o país, áreas que deveriam estar protegidas são consumidas cada vez mais por desmatamento, invasões e queimadas. Dados do último Prodes, sistema de monitoramento do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), mostraram que a devastação cresceu 35% nesses locais entre agosto de 2018 e julho de 2019.
DW Brasil: Neste momento de retrocessos ambientais no país, quais questões mais urgentes têm exigido atuação do Ministério Público?
Cristina Seixas Graça: Temos uma legislação ambiental de grande eficiência, as leis brasileiras são boas. O grande momento que a gente tem vivido é de retrocesso de proteção, o que é proibido, inclusive. A gente observa vários movimentos voltados para reduzir direitos que já chegaram a um ponto que não se pode mais voltar atrás.
Um dos pontos mais importantes hoje é a sociedade brasileira tomar consciência da importância do seu arcabouço jurídico ambiental e da necessidade de preservá-la como está.
Outra área que vejo com muita fragilização neste momento no Brasil é exatamente a desestruturação dos órgãos de fiscalização ambiental. A gente observa, por exemplo, uma redução clara de fiscalização a partir do próprio órgão federal, do Ibama, da discussão da desestruturação do ICMBio, que tem toda uma visão de criação, implementação e gestão de unidades de conservação. São questões muito claras na nossa visão de Ministério Público, e atuamos na defesa da legislação e eficiência.
Por fim, temos visto também um grande problema na preservação de biomas brasileiros. A gente vê o Pantanal queimando, a Amazônia queimando, a Mata Atlântica sendo devastada por empreendimentos e sofrendo redução de proteção. Essa proteção da biodiversidade brasileira é muito preocupante para quem atua na defesa ambiental.
O Ministério Público levou adiante processos marcantes recentemente, como foi o caso da usina de Belo Monte, em que promotores questionaram vários pontos do projeto em mais de 20 ações. No fim, a usina foi finalizada e está em operação. Na visão da senhora, a atuação do Ministério Público dentro do sistema Judiciário tem gerado resultados satisfatórios, principalmente para os atingidos?
O sistema Judiciário não é feito pelo Ministério Público sozinho. O nosso papel é fazer o enfrentamento, é buscar o tempo todo a garantia dos direitos fundamentais através da implementação da lei e das políticas públicas. Nós temos na área ambiental colegas que atuam com muita garra e muita coragem na defesa desses bens de todos, do direito à vida.
O MP faz sua parte, às vezes, com dificuldade, com necessidade de parcerias com entidades científicas. O direito ambiental tem uma interdisciplinaridade muito grande, é preciso buscar o tempo todo uma veiculação com uma área científica, técnica. Na verdade, a formação inicial dos promotores é a formação jurídica. Imagine o que é estudar uma disciplina que faz interface com química, física, antropologia, biologia, geografia… É um saber múltiplo.
Estamos trabalhando com patrimônio cultural, com a vida de comunidades tradicionais. O enfrentamento também precisa ser feito na questão desse conhecimento pelo Judiciário. É preciso que as duas esferas, tanto o Ministério Público quanto o Judiciário, que, no fim, é quem julga, decide, também tenha esse conhecimento para fazer exatamente aquilo que a legislação já diz.
A Constituição brasileira faz ativismo ambiental. Nós apenas, como defensores dessa sociedade, temos o papel de implementar isso, que esse ativismo constitucional se concretize em melhoria para a população brasileira. O sistema jurídico precisa se aperfeiçoar, para concretizar a Constituição.
O conhecimento ambiental precisa ser difundido para todos os atores do sistema jurídico. O juiz, ao julgar uma ação, como foi em Belo Monte, que tem toda uma discussão de política energética, de política de proteção às comunidades indígenas, de garantia dos recursos hídricos… Imagine a quantidade de conhecimento que está dentro daquela ação. É preciso que não só o Ministério Público tenha esse conhecimento e o traga para o Judiciário, mas para que o juiz possa decidir adequadamente, ele precisa ter esse conhecimento.
E este também tem sido o papel da Abrampa, que tem atuação especializada em meio ambiente?
Acabamos de lançar o Manual de Compensação Ambiental do Sistema Nacional de Unidades de Conservação, que é de orientação, um produto que resultou de uma parceria da Abrampa junto com a Fundação Grupo Boticário. Ele vem no sentido de trazer esse conhecimento e fomentar e apoiar a atuação dos nossos membros do Ministério Público, de modo geral, na fiscalização da aplicação de instrumentos de um mecanismo financeiro muito importante em prol das unidades de conservação, da compensação ambiental.
A compensação é algo decorrente daquele impacto negativo estabelecido nos estudos de impacto ambiental nos licenciamentos de atividades que têm um potencial nocivo maior. E esses estudos estabelecem qual é o valor desse impacto e o empreendedor, com base na legislação, é obrigado a compensar esse dano com recursos econômicos. Esses recursos são destinados às unidades de conservação dentro do que a legislação estabelece para uso prioritário.
O tema é muito complexo. A questão da compensação ambiental com base no artigo 36 da lei de Sistema Nacional de Unidades de Conservação (Snuc) é complexa sob o ponto de vista de onde depositar, de quem vai gerir o recurso, de onde pode ser aplicado o recurso. O manual traz isso, é algo inédito na academia.
O Snuc, aliás, completa 20 anos em 2020. Duas décadas depois e de todas as unidades de conservação criadas nesse período, como a senhora avalia o momento atual, em que o desmatamento cresce dentro de áreas que deveriam ser destinadas à preservação e há tentativas de redução das unidades?
Acho que há uma precariedade na implantação e gestão dessas unidades. Precisamos ter essa discussão sobre o que representam essas unidades para o Brasil, esses territórios com condições especiais, únicas muitas vezes em todo o mundo.
A gente tem uma defasagem enorme de pessoal qualificado para tratar desses ambientes, não tem uma fiscalização adequada, por isso que acontecem grandes invasões, desmatamento e queimadas. A gente tem uma ausência de plano de manejo, escassez de dinheiro para gerir e de uma coisa muito relevante, que é a regularização fundiária dessas unidades.
Temos 2.309 unidades de conservação no cadastro nacional, mas ainda existem muitas que não estão no cadastro. É muito importante que a gente possa conceber que essa proteção precisa ser efetivada.
Há um mito de que nós temos muitas unidades de conservação, muita terra protegida. Mas se a gente for verificar efetivamente que, apesar de termos mais de 2 mil unidades, muitas delas estão ainda em estado precário de proteção, de manutenção e gestão. Então, a proteção não é tão grande o quanto parece.
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