Por Cimi –
Pressionado por fazendeiros e empreendimentos em seu território, o povo Pataxó iniciou a autodemarcação de suas terras e sofre com ameaças, ataques e assassinatos
Nos últimos meses, a violência contra o povo Pataxó, no extremo sul da Bahia, tornou-se parte do cotidiano das aldeias localizadas nas Terras Indígenas (TIs) Barra Velha do Monte Pascoal e Comexatibá. Depois do assassinato do menino Gustavo Pataxó, de 14 anos, e mais recentemente dos jovens Nauí, de 16, e Samuel, de 25, o medo ronda as aldeias e os indígenas evitam até mesmo transitar pelo próprio território.
Os ataques intensificaram-se a partir de junho de 2022, quando o povo Pataxó deu início ao processo de autodemarcação de seu território. O menino Gustavo Silva da Conceição foi assassinado com um tiro pelas costas, na madrugada do dia 4 de setembro, enquanto tentava fugir dos pistoleiros que atacaram a retomada Vale do rio Cahy.
No dia 13 de outubro, o corpo do Pataxó Carlone Gonçalves da Silva, de 26 anos, foi encontrado na região. Ele havia desaparecido um mês antes, quando se deslocava entre as aldeias Boca da Mata e Cassiana, na TI Barra Velha. As lideranças Pataxó afirmam que o caso está relacionado aos conflitos pela terra.
Meses depois, no dia 17 de janeiro de 2023, Samuel Cristiano do Amor Divino, de 25 anos, e o adolescente Nauí Brito de Jesus, de 16 anos, foram perseguidos e executados por pistoleiros que atuam para fazendeiros da localidade. Os dois jovens tinham saído para comprar alimentos no distrito de Montinho, que fica próximo à retomada onde viviam.
O distrito faz parte do município de Itabela (BA) e fica na margem oposta da BR-101, que delimita o território indígena. Ambos foram mortos na estrada, não por coincidência, onze dias depois de iniciada a retomada das fazendas Condessa e Veneza, propriedades localizadas dentro dos limites da TI Barra Velha, em meio à intensificação dos conflitos na região.
“Eles mataram os parentes covardemente aqui dentro do próprio território”, indigna-se uma liderança Pataxó, que não será identificada nesta matéria por motivos de segurança.
O acirramento dos conflitos e a pressão de fazendeiros e empresários do turismo sobre as terras Pataxó têm tirado a liberdade do povo para circular no próprio território e também nas cidades da região.
“A gente está oprimido sem poder sair, sem ir na cidade” explica o indígena. “Porque hoje a visão [dos fazendeiros] não é só matar liderança, a visão hoje é matar qualquer indígena que sair do nosso território”.
A liderança relata ainda, além do assassinato dos quatro jovens Pataxó, outras tentativas de homicídio que se evidenciam nas marcas de fuzilamento deixadas nas casas de fazendas retomadas pelos indígenas.
Esses sinais de violência se fizeram comuns nas recentes áreas de retomada dos territórios de Barra Velha e Comexatibá. Mas a quantidade e o calibre dos tiros não deixam de impressionar, pois denotam o alto grau de violência investido contra os Pataxó.
“Eles atiram para acertar. Nós temos provas, pegamos as cápsulas de fuzil. Nós estavámos em cinco pessoas lá e eles deram mais de cem tiros na casa. Só não pegou porque corremos”, conta.
Espera, cansaço e autodemarcação
A brutalidade dos ataques, ameaças e assassinatos promovidos contra o povo Pataxó se agrava à medida que a comunidade avança sobre as áreas invadidas por fazendeiros. Desde junho do ano passado, essas terras vêm sendo retomadas pelos Pataxó por meio de um processo de autodemarcação territorial.
“Nós não estamos mais aguentando a morosidade, a demora da conclusão dos processos fundiários nas terras indígenas Pataxó. Com essa morosidade está vindo a prostituição, a droga, a urbanização, a degradação ambiental, a contaminação e a descaracterização do que é terra indígena pela construção imobiliária”, explica Mãndy Pataxó, cacique da aldeia Vale do Cahy, localizada na TI Comexatibá.
“Por não aguentarmos mais todo esse processo violento, estamos fazendo um processo de autodemarcação, ocupando as áreas degradadas, as áreas que estão em mãos irregulares, de fazendeiros e latifundiários dentro das terras indígenas. Estamos ocupando essas áreas para poder evitar a destruição. E, por causa disso, nós estamos sofrendo toda uma represália”, relata a liderança.
“Esse território é nosso”, explica Uruba Pataxó, vice-cacica da aldeia-mãe Barra Velha, ao se referir aos 52,7 mil hectares relativos à área de revisão de limites da TI Barra Velha e aos 28 mil hectares da TI Comexatibá. A autodemarcação desses dois territórios foi a saída encontrada pelo povo para efetivar o direito de viver e habitar suas terras.
“Se a gente não fizer a nossa autodemarcação, governo nenhum vai fazer. Porque eles acham que se a gente não entrar para dentro da terra, ela não nos pertence”, considera a vice-cacica.
Morosidade e pressão
As TIs Barra Velha e Comexatibá já foram identificadas e delimitadas pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e, com as particularidades de cada caso, aguardam a emissão da portaria declaratória pelo Ministério da Justiça.
A TI Barra Velha do Monte Pascoal aguarda a portaria desde 2009, quando foi publicado o relatório circunstanciado de identificação e delimitação da área pela Funai. Fazendeiros questionaram judicialmente a demarcação, mas foram derrotados no Superior Tribunal de Justiça (STJ), que decidiu favoravelmente aos indígenas em 2019. Desde então, não há nenhum impedimento legal à emissão da portaria.
Na década de 1980, a TI Barra Velha foi reservada com uma área pequena, de apenas 8.627 hectares, deixando grande parte do território de fora da demarcação. Para os Pataxó a revisão dos limites da área demarcada é fundamental para garantia de um futuro às novas gerações.
“Esses 8.627 hectares, onde eu moro, que é a área demarcada e homologada, ela é pequenininha. E tem uma parte dela, na orla, que está sendo invadida por grileiros, com venda de terras e [especulação] imobiliária dentro do nosso território”, explica Uruba.
Já a TI Comexatibá, identificada e delimitada em 2015, aguarda que a Funai responda às contestações feitas no procedimento demarcatório para que, então, a portaria declaratória possa ser emitida pelo Ministério da Justiça.
A Instrução Normativa 09/2020, publicada pela Funai sob o governo Bolsonaro, evidenciou a enorme pressão a que estes territórios estão submetidos. A medida liberou a certificação de fazendas sobre terras indígenas ainda não homologadas, como é o caso das duas terras Pataxó no centro dos atuais conflitos.
As consequências para os Pataxó foram imediatas: nos primeiros meses após a publicação da normativa, 51 fazendas, com um total de 11,4 mil hectares, foram certificadas sobre as TIs Barra Velha do Monte Pascoal e Comexatibá, a maioria delas integralmente sobrepostas às terras indígenas.
Entre abril e agosto de 2020, foram dez certificações de propriedades sobre a TI Comexatibá e 41 sobre a TI Barra Velha do Monte Pascoal, a maioria delas pertencente aos fazendeiros derrotados no STJ.
Apesar das decisões judiciais suspendendo a validade na normativa em 13 estados após ações do Ministério Público Federal (MPF), inclusive na Bahia, e do anúncio de anulação da normativa pelo Ministério dos Povos Indígenas, as certificações já concedidas não perderam validade.
Com elas, os fazendeiros podem negociar e financiar atividades nestas áreas, aumentando ainda mais a pressão e a devastação do território já reconhecido oficialmente como tradicionalmente ocupado pelo povo Pataxó.
O movimento de autodemarcação iniciado pelos Pataxó tem sido uma resposta à omissão do Estado e uma forma de evitar a degradação ainda maior do território pelo agronegócio e por empreendimentos privados.
Contudo, em meio à crescente onda de violência, ameaças e conflitos com os fazendeiros, “ter a terra no papel”, como explicou Candara, liderança do povo Pataxó e mãe de Gustavo, é ainda para seu povo à medida que colocará fim nos conflitos.
“Queremos ter nossa liberdade de plantar e colher. Para viver mais em harmonia, sem violência dentro do nosso próprio território”, afirma a liderança.
Força-Tarefa e atuação da PM
Desde setembro do ano passado, após o assassinato de Gustavo Pataxó, um grupo policial constituído por policiais militares, civis e bombeiros tem atuado no extremo sul da Bahia a fim de conter a violência e os conflitos promovidos pelos fazendeiros.
Criada pela Secretaria de Segurança Pública do governo do estado da Bahia, a Força-Tarefa, como é conhecida na região, tem se ocupado pouco de suas atribuições. Responsável por garantir a segurança e a proteção do povo Pataxó, a Força-Tarefa tem se mostrado pouco disponível para atender as denúncias feitas pelo povo.
Segundo Uruba Pataxó, a Força-Tarefa só veio para a região depois do assassinato do Gustavo, mas não conseguiu evitar a morte de outros jovens como Samuel e Nauí.
“Eles chegaram dizendo que vieram para apaziguar o conflito. Mas antes de sentar com os indígenas para saber o que estava acontecendo, eles foram primeiro sentar com os fazendeiros”, relata Uruba.
A falta de clareza na atuação da Força-Tarefa no extremo sul da Bahia reflete-se, também, em declarações de integrantes do governo estadual. Foi o caso do secretário estadual de Justiça e Direitos Humanos, Felipe Freitas, que afirmou, no final de janeiro, que “no extremo sul [da Bahia] não existe demarcação, há um litígio, uma disputa”.
O diálogo com a comunidade Pataxó só ocorreu após muita cobrança e pressão, mas ainda assim se mostrou insuficiente. “Eles passam na porta das ocupações indígena, das áreas de autodemarcação, mas não entram nas fazendas para prender os pistoleiros que estão atirando todas as noites no indígena”, denuncia Mãndy.
Os questionamentos dos Pataxó quanto à conduta da Força-Tarefa não se dão em vão. Tanto o assassinato de Gustavo como de Samuel e Nauí resultaram na prisão de policiais militares, suspeitos de atuarem como pistoleiros a mando de fazendeiros. Três PMs foram presos, em outubro, suspeitos de matarem Gustavo, e outro foi preso em janeiro, acusado de assassinar os outros dois jovens.
“Hoje, quem anda matando nosso povo na nossa região, fazendo pistolagem, é uma parte da Polícia Militar do estado da Bahia”, relata uma liderança não identificada por razões de segurança. “Por isso, nós queremos a presença da Polícia Federal dentro da área indígena. É dever da Polícia Federal intervir, tomando pé dessas investigações referente à morte de Samuel e Nauí”, reivindica.
Essas demandas foram reforçadas pelo povo Pataxó em recente visita ao Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), em Brasília, no dia 7 de fevereiro. Os indígenas foram recebidos pelo Secretário Nacional de Justiça, Augusto de Arruda Botelho, que prometeu, em declaração veiculada pelas redes sociais do ministério, levar ao ministro do MJSP, Flávio Dino, os pedidos de federalizar a investigação dos crimes contra indígenas na região.
O povo também cobrou, novamente, a presença da Força Nacional nos territórios Pataxó. “É muito importante essa escuta e vou levar todas essas reivindicações ao ministro da Justiça, para que essas deliberações possam ser feitas”, garantiu Botelho.
Para Mãndy Pataxó, a presença da Força Nacional é de extrema importância e “segurança para nós”.
“Deixamos bem encaminhado [com o secretário do ministério da Justiça] o pedido e eles ficaram de solicitar ao governador essa ida da Força Nacional para região. A secretaria do ministério da justiça se comprometeu também em reunir com o governador e convocar os representantes dos movimentos indígenas para levar essa pauta da Força Nacional em nossa região”, informa a liderança.
Na última sexta-feira, dia 10, representantes do povo Pataxó se reuniram com o secretário executivo do Ministério dos Povos Indígenas, Eloy Terena, a quem entregaram uma carta solicitando a visita presencial do Gabinete de Crise ao território Pataxó.
“O que Eloy respondeu para gente é que a ministra Sônia Guajajara vai com a delegação do Comitê de Crise à nossa região, rápido, esses dias agora. Estamos contando com isso porque é preciso a segurança”, relata Mândy Pataxó, que esteve presente na reunião.
O Gabinete de Crise foi criado no dia 18 de janeiro deste ano, um dia após o assassinato de Samuel e Nauí, “com finalidade de acompanhar a situação de conflitos na região do extremo sul da Bahia”. Constituem o Gabinete a própria ministra Sônia Guajajara, representantes da Funai e das secretarias executiva e de direitos territoriais indígenas, bem como do departamento de mediação e conciliação de conflitos indígenas.
Também compõem o Gabinete, como membros convidados, representantes do Ministério da Justiça e Segurança Pública, do Governo do Estado da Bahia, da Defensoria Pública da União (DPU), do MPF, do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) e da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).
O povo Pataxó pede a presença do Gabinete na região “para tratar da crescente escalada de violência praticada contra o povo Pataxó por seus inimigos históricos”, diz a carta.
No documento, o povo clama por socorro e por “medidas urgentes que garantam a proteção de nossas comunidades[…] Só a demarcação é capaz de resolver os conflitos de forma permanente”.
Confira a carta na íntegra:
Ao Ministério dos Povos Indígenas,
Ministério da Justiça e
Fundação Nacional dos Povos Indígenas:
Nós, povo Pataxó do Extremo Sul da Bahia, solicitamos urgentemente ao Gabinete de Crise uma visita aos territórios Pataxó de Barra Velha do Monte Pascoal e Comexatibá para reunião presencial com nossas lideranças, para tratar da crescente escalada de violência praticada contra o povo Pataxó por seus inimigos históricos, que têm se articulado contra a demarcação dos nossos territórios, as Terras Indígenas Barra Velha do Monte Pascoal e Comexatibá.
Nos últimos meses, quatro jovens Pataxó já foram assassinados devido à luta pela demarcação territorial. Sofremos, constantemente, ameaças e invasões de nossas aldeias por grupos armados de pistoleiros milicianos contratados por fazendeiros da região.
Precisamos de medidas urgentes que garantam a proteção de nossas comunidades e a demarcação de nossas terras. Só a demarcação é capaz de resolver os conflitos de forma permanente.
O povo Pataxó pede socorro!!
Atenciosamente,
Extremo Sul da Bahia, janeiro de 2023.