Ambiente

Estados latino-americanos devem atender a crise do cuidado

 

Uma idosa se apoia em uma cuidadora, em uma rua do bairro Norte, de Buenos Aires, na Argentina. Foto: Fabiana Frayssinet/IPS
Uma idosa se apoia em uma cuidadora, em uma rua do bairro Norte, de Buenos Aires, na Argentina. Foto: Fabiana Frayssinet/IPS

 

Buenos Aires, Argentina, 27/4/2015 – O cuidado com crianças, idosos e deficientes na América Latina está tradicionalmente a cargo das mulheres, que o somam à suas muitas outras tarefas domésticas e profissionais. Agora, na região começa o debate sobre quais políticas públicas o Estado deve adotar para ajudá-las, mas também para ajudar o país a crescer.

Isso é sintetizado pela vida da terapeuta corporal argentina Alicia, que pediu para não citar seu sobrenome. Depois de criar três filhos e decidir se concentrar no sonho adiado de ser escritora, agora tem a seu cargo sua mãe de quase 99 anos. A idosa está bem de saúde para sua idade, quase sem dificuldades cognitivas ou motrizes. Entretanto, o tempo não perdoa e Alicia começa a se perguntar o que fará – sem recursos econômicos disponíveis – para pagar um enfermeiro ou acompanhante a domicílio por tempo integral.

“Noto que algumas coisas vão mudando no estado da minha mãe. Ainda se movimenta quase sozinha, toma banho, se locomove, mas cada vez é mais difícil. E os esquecimentos que tem são cada vez mais freqüentes”, contou Alicia, que até agora conciliou seu trabalho e viagens profissionais graças à ajuda de uma prima e uma pessoa que paga como apoio.

“Se sua vida se prolongar terei que me arrumar de outra forma. Não poderei deixá-la sozinha por algumas horas como agora. É uma interrogação como vou me arrumar. O tempo passa e logo terei que ter definida uma estratégia, se quero seguir com minha vida”, acrescentou.

Na Argentina, segundo o Instituto Nacional de Estatística e Censos, as mulheres dedicam às atividades de cuidado o dobro do tempo que os homens: 6,4 horas por dia, contra 3,4 horas/dia. Para as que trabalham fora esse tempo cai para 5,8 horas. Diante do novo contexto demográfico regional, a situação poderia piorar, segundo Gimena de León, analista da área de Desenvolvimento Inclusivo do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud).

“Na América Latina estamos diante do que se passou a chamar de crise do cuidado. Com a melhoria da expectativa de vida existe um envelhecimento da população, o que implica mais quantidade de pessoas que requerem cuidados”, disse Gimena à IPS. “Ao mesmo tempo, houve uma queda da população em condições de cuidar, basicamente pela entrada maciça da mulher no mercado de trabalho. É aí que acontece o gargalo entre a necessidade de cuidado que apresenta a estrutura populacional atual e esta diminuição da capacidade familiar de cuidar”, pontuou.

A Organização Internacional do Trabalho (OIT) diz que na região a média de mulheres no mercado de trabalho alcança 53%. A proporção sobe para 70% entre as que têm de 20 a 40 anos. Paralelamente, estima-se que em 2050 os idosos constituirão quase um quarto da população latino-americana, em um processo de envelhecimento que apresenta um fenômeno demográfico novo para a região, atualmente com 600 milhões de pessoas.

Mudanças que segundo René Mauricio Valdés, representante residente do Pnud na Argentina, deixam uma “espécie de espaço vazio”, mais visível na agenda política, porque até agora se supunha que as famílias, e particularmente as mulheres, estivessem encarregadas do cuidado.

O Pnud e outras organizações como a OIT e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) promovem um debate regional sobre a necessidade de os Estados definirem políticas pública do cuidado, entre outras razões para conseguir maior igualdade de gênero. Segundo o Pnud, entende-se por “cuidado o “conjunto de atividades e relações voltadas a alcançar os requerimentos físicos e emocionais da população alvo de cuidado”, isto é, crianças, idosos com dependência e deficientes.

Na região, os maiores progressos se deram na Costa Rica, sobretudo na área da infância, e no Uruguai, onde começou a ser construído um “sistema nacional de cuidados” para crianças entre 0 e 3 anos, pessoas com necessidades especiais e idosos, e a melhorar as condições de trabalho dos profissionais dessa área. Outros países, como Chile e Equador, também estão avançando, mas com medidas ainda isoladas.

Na Argentina, o Programa de Cuidadores Domiciliares da Nação forma este pessoal e presta esse serviço em domicílio, através de obras públicas, à famílias em situação de vulnerabilidade social. Mas a lista de espera é longa.

“As políticas atuais não bastam para aliviar o peso que o cuidado tem para as famílias, e dentro delas para as mulheres que são as que fazem esse trabalho de cuidado, em tempo muito maior do que os homens”, explicou Gimena de León. “Há uma clara injustiça em termos de distribuição e dos recursos das mulheres, onde o Estado tem muito para fazer”, enfatizou.

As soluções surgirão das particularidades de cada país. Entre outras medidas gerais são citadas licenças maternidade e paternidade mais longas, mais serviços de cuidadores de idosos e de creches para menores, a possibilidade de trabalhar em casa e flexibilização dos horários profissionais. Gimena citou outras, com a implantação de “bancos de horas” trabalhistas, que possam ser usadas quando uma mulher ou um homem precisa sair antes do horário para cuidar de uma criança ou de um idoso enfermo.

Mas, trata-se de uma tema incipiente no debate e invisibilizado para os tomadores de decisões, segundo Fabián Repetto, do Centro Argentino de Implantação de Políticas Pública para a Igualdade e o Crescimento. “De alguma maneira as diferentes coisas que são feitas – que alguém poderia incorporar sob a lógica de política de cuidado – nunca tiveram essa proteção conceitual que dê uma ordem estratégica à política”, afirmou à IPS.

Para o Pnud, o “fundamento econômico” dos promotores desta discussão é “a necessidade de incorporar a força de trabalho feminina para melhorar a produtividade dos países e a possibilidade de as famílias saírem da pobreza”. Também busca melhorar o “capital humano” de meninos e meninas “cujos níveis educacionais serão fortalecidos com políticas integrais de cuidado em contextos estimulantes”.

“O que significa isso? Que essas crianças, às quais hoje damos desenvolvimento infantil precoce e fortalecemos com uma política de cuidado, serão muito produtivas. E ser muito mais produtivo como sociedade faz com que o país cresça, e que seja capaz de ter melhores políticas também para os idosos”, observou Repetto.

Alicia prefere que o fundamento seja “humano”. Para ela, “a ideia é o respeito à vida de uma pessoa idosa, que às vezes por diferentes motivos temos dificuldades para manter. Respeito pela dignidade do outro, que o outro viva o melhor que possa até seu último momento. Que seja um cuidado, e cuidado não significa apenas trocar suas fraldas, mas que seja um cuidado como ser humano”. Envolverde/IPS