Complementaridade a sistemas como o do Inpe fortalece o mapeamento do bioma e a imagem da ciência brasileira, dizem pesquisadores.
O Sistema de Alerta de Desmatamento do Cerrado (SAD Cerrado) foi lançado nesta segunda-feira, 12, e já está disponível para acesso aberto em plataforma virtual. A ferramenta foi desenvolvida pelo IPAM (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia) em parceria com a rede MapBiomas e com o Lapig (Laboratório de Processamento de Imagens e Geoprocessamento), da UFG (Universidade Federal de Goiás). O SAD Cerrado funciona por meio de inteligência artificial e utiliza imagens do satélite Sentinel-2, da Agência Espacial Europeia, com resolução de 10 metros.
“Esperamos que o SAD Cerrado seja uma ferramenta para criação de políticas públicas voltadas a compatibilizar o desenvolvimento econômico e a conservação do Cerrado, um bioma extremamente importante para a dinâmica hídrica e para a estocagem de carbono. Estamos falando da savana mais biodiversa do mundo, fundamental para a conservação da biodiversidade. Sob diversos aspectos, o Cerrado é de relevância estratégica para o Brasil e, temos visto, tem sido objeto da especulação imobiliária e do avanço da fronteira do agronegócio na região do Matopiba, onde estão os maiores remanescentes de vegetação nativa do bioma”, disse André Guimarães, diretor-executivo no IPAM.
Complementaridade entre sistemas
No evento de lançamento, pesquisadores destacaram a complementaridade entre sistemas como o SAD Cerrado e o Deter, do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), de forma a fortalecer o mapeamento e monitoramento do bioma e até mesmo a imagem da ciência brasileira como referência em sensoriamento remoto e geoprocessamento para detecção e análise de mudanças no uso da terra.
“A diversidade é um bom caminho, não apenas biológico, mas tecnológico também”, ressaltou Yuri Salmona, pesquisador no Instituto Cerrados, convidado ao debate sobre o uso de alertas no combate ao desmatamento. “É preciso reconhecer a capacidade brasileira de produzir ciência de alta qualidade, ferramentas tecnológicas de alta qualidade, e levar a mensagem de que o Brasil é referência quanto ao sensoriamento remoto. Ciência essa que é prática e que tem capacidade de influenciar políticas públicas”.
Cláudio Almeida, coordenador do Programa de Monitoramento da Amazônia e demais biomas no Inpe, considerou o momento histórico. “É um evento histórico o lançamento do SAD Cerrado, um sistema totalmente complementar para a gente trabalhar junto. O sistema oficial é obrigação do Estado, mas, ao mesmo tempo, a sociedade civil tem que ter seus próprios sistemas [de alerta de desmatamento]. É salutar que existam, inclusive, com metodologias diferentes e que, no fundo, funcionem como contrapeso um do outro. A sociedade ganha com isso, pois consolida a seriedade e fortalece a imagem do país como uma nação, independentemente de governo, que está comprometida com a questão ambiental e que quer mudar o quadro do desmatamento”.
“Reforçamos a necessidade do Inpe continuar com seu trabalho sobre monitoramento. O serviço que o Deter Amazônia e o Deter Cerrado têm prestado à sociedade brasileira para apoiar a fiscalização quase em tempo real tem que continuar”, pontuou Ane Alencar, diretora de Ciência no IPAM.
Pesquisadores lembraram que a ausência de um monitoramento do Cerrado, antes que instituições como o Inpe começassem essa atuação no bioma, em 2016, é responsável por uma lacuna de 30 anos sem dados. “Perdemos 30 anos no nosso percurso com o Cerrado pedindo monitoramento. A gente não tem mais o que esperar, agora temos a informação. Hoje, a gente pode realmente dizer: não é por falta de dados. É isso que os sistemas complementares de monitoramento mostram pra gente. Ao mesmo tempo, vamos precisar de um esforço colaborativo apontando as soluções. Não queremos tirar a agricultura, nem a pecuária, mas a gente quer novos modelos de agricultura e pecuária para o bioma”, destacou Mercedes Bustamante, professora na UnB (Universidade Nacional de Brasília).
Populações tradicionais e economia do Cerrado de pé
Isabel Figueiredo, coordenadora dos Programas Cerrado e Caatinga no ISPN (Instituto Sociedade, População e Natureza), citou estudo que identificou irregularidades em autorizações de supressão da vegetação nativa no oeste da Bahia, estado que está na 4a posição em maior área de alertas detectados pelo SAD Cerrado em 2022. A região oeste da Bahia é conhecida por abrigar comunidades tradicionais geraizeiras com raízes que, dizem moradores e moradoras, se remontam à população de Canudos e de quilombos.
“A gente acredita que o SAD Cerrado vai ajudar a evidenciar a sobreposição de desmatamentos com territórios de comunidades tradicionais, prática que tem sido frequente na região do Matopiba. Grande parte das comunidades não possui um papel da terra, mas possui ocupação de três, quatro ou mais gerações e isso já comprova que são terras públicas. São processos muito complexos, que além de degradarem o bioma Cerrado, parar de gerar água e energia para nosso país, criam um problema social enorme, desrespeitam direitos humanos e nossa cultura”, comentou Figueiredo.
“Não podemos esquecer da violência que está associada a esse processo de ocupação das áreas desmatadas. Estamos falando da vida das pessoas, são povos e comunidades tradicionais que estão sendo assassinados e colocados em situação de vulnerabilidade”, alertou Bustamante, que elencou a proteção a populações tradicionais como a primeira das prioridades para reverter o cenário de destruição do Cerrado e proteger o bioma, preservando a sociobiodiversidade e serviços ecossistêmicos. A segunda prioridade, na visão da professora, seria responsabilizar e rastrear cadeias produtivas; a terceira prioridade seria a contextualização do discurso do agronegócio, considerando não somente os ganhos do setor, mas as externalidades relacionadas; e a quarta prioridade o trabalho com agentes financeiros para possibilidades econômicas com o Cerrado de pé.
Salmona ecoou: “Às vezes se tem a ideia de que o desmatamento é uma condição primária para o desenvolvimento e para a geração de renda, e esse é um pressuposto extremamente equivocado. A gente não precisa de mais áreas para produzir. Precisamos urgentemente aprender a utilizar o Cerrado de pé, com pacotes tecnológicos e linhas de financiamento para aproveitar produtos florestais não madeireiros, fortalecendo a economia da sociobiodiversidade”.
A ocupação de novas áreas no Cerrado não se justifica nem de acordo com o que mostram os dados, indicou Dhemerson Conciani, pesquisador no IPAM. “A abertura de novas áreas [com o desmatamento] tem muito mais a ver com o processo de ocupação do território em si do que com a produtividade, se a gente parar para ver no que essas áreas se transformam. Já tem uma série de áreas que estão abertas com alta aptidão agrícola, e se a realidade fosse condizente com o discurso, a gente estaria aproveitando essas áreas que hoje estão ocupadas apenas com capim exótico, transformando-as em áreas produtivas”.
Dados e resultados
O SAD Cerrado detectou que, no primeiro semestre de 2022, uma área equivalente ao Distrito Federal foi desmatada em todo o Cerrado: cerca de 472.816 hectares. Nesse período, foram detectados mais de 50 mil alertas de desmatamento. Somente no último trimestre, houve um aumento de 15% na área desmatada no bioma em relação ao mesmo período do ano passado: foram 291,2 mil hectares derrubados, entre maio e julho de 2022, contra 253,4 mil hectares desmatados nos mesmos meses de 2021.
O sistema revelou uma maior concentração de áreas desmatadas no Maranhão, que, com 124,7 mil hectares desmatados, acumula 26,4% de todo o desmatamento detectado no bioma em 2022. O Tocantins apresentou a segunda maior área de alertas, 108,7 mil hectares, a maior parte na região norte do estado, em áreas de expansão do cultivo de soja.
“A tendência do desmatamento no Cerrado está nas áreas que estão se consolidando nessa fronteira, como no Matopiba. O que a gente percebeu é que a soja está descendo os chapadões, se implantando em áreas que não tem tanta aptidão, mas que são favorecidas pela proximidade da estrutura da produção agrícola. É importante prever essa ampliação e ter medidas específicas nos municípios da região com comunidades tradicionais. No norte do Maranhão, por exemplo, há conversão em pequenos fragmentos, territórios de quebradeiras de coco que estão sendo invadidos. São derrubadas atomizadas que a gente está começando a enxergar, e esse tipo de desmatamento se contém mediante o reconhecimento de territórios tradicionais. Está mais do que demonstrado que são as populações tradicionais as que podem proteger os remanescentes”, afirmou Juan Doblas, pesquisador no IPAM responsável pelo SAD Cerrado.
Entre os municípios que mais desmataram, Balsas, no Maranhão, foi o que mais desmatou, com mais de 12 mil hectares. Em segundo lugar está o município de São Desidério, na Bahia, com 9,5 mil hectares desmatados. A cidade baiana concentra a terceira maior produção de soja no país, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).
A velocidade média do desmatamento foi de mais de 2 mil hectares por dia e a maior parte da área de supressão está em vegetações do tipo savana, com 69,2% da área desmatada. As áreas privadas representaram 78,9% do desmatamento no bioma.
Serviço
Acesse a plataforma do SAD Cerrado.
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